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O Paraíso das Bicicletas

  • Escrito em 2019

eu tive uma ideia agora, e é uma ideia das boas, disse ele enquanto a roda da bicicleta ia com tudo num barranco grande daqueles; sorte dele que a bicicleta não foi para o paraíso das bicicletas onde ficam as bicicletas que se lascam feio como a dele agora ou a que eu tinha em 2003,

quando um carrão daqueles que não precisavam nada ser tão enormes passou por cima da minha bicicleta e quase me levava junto. o paraíso das bicicletas eu imagino como um grande estacionamento de supermercado, o supermercado sendo onde ficam deus e os anjos e os profetas e o estacionamento um lugar bem sinalizado e asfaltado. claro, é dia, e faz calor e um solzão e não tem uma nuvem no céu.

digo isso só porque hoje esse barranco maldito usou a água da chuva de esconderijo; ele foi longe pousou em lama fresca molhada de bosque escuro. e nem é escuro das árvores, é escuro de céu nublado que a TV maldita disse que nem ia chover tanto assim hoje. tenho medo de cair raio. usamos capa molhada mas que ainda não vem com para-raio. você não ouviu isso de mim, mas tenho medo que bicicleta atraia raio. vem-raio.

ele disse, eu estava dizendo, tenho uma ideia, muito muito boa, disse enquanto se levantava e limpava a lama suja dos jeans, eu tenho um ideia. no começo eu não liguei mas ele começou a cambalear e tentou uma vez subir na bicicleta, e mais uma vez, e na terceira desistiu. chuva forte é fogo. a caída foi braba e lançou sua perninha em direção a uma pedrona; ela ficou chateada e resolveu revidar.

eu tenho uma… enquanto levantava a calça, e ainda bem que mole e não daquelas apertadas que ele usa, mas ainda assim é jeans o que dificulta as coisas. e o tecido preso na perna porque levou tanta água, que guardou tudo para si e grudou pesada na pele como que dizendo aqui não entra mais. engraçado essas dos tecidos e sua relação com a água. engraçado essa relação com a água e o sangue, porque a chuva ia caindo no machucado e derramando tudo, meio que limpando mas ainda assim incapaz de estocar o sangramento.

fizemos a volta a pé mesmo, eu levando duas bicicletas, e um amigo que olhava atento para baixo como se em direção da forma como a chuva cai, o braço apoiado nas minhas costas para não cair tal qual água da chuva.

o que você ia dizendo? eu perguntei. ele disse? o quê? eu disse, sobre a sua ideia muito boa. ele disse, ai, deixa pra lá. não era nada de nada.
a chuva engrossou e eu não sabia que isso fosse possível. ainda faltava pra chegarmos na cidade.

fala, vai, eu disse gritando ainda que estivesse ao seu lado. a chuva fazia pouco da minha voz. eu quis dizer, ele disse, tentando ser maior que a chuva, que tive uma ideia. vamos invadir a usina e tirar umas fotos por lá e mandar pra natália. a gente usa a tesoura de jardinagem do meu avô, ele não tá usando esses dias. a natália dizia que a gente nunca teria coragem. vamos entrar lá, e provar o contrário.

ele disse essas palavras não olhando para baixo, mas olhando pra frente, e eu pensei sobre isso, e não consegui concluir se as vezes a chuva bloqueia a inteligência ou se enobrece a coragem.

natália deve significar muito pra você, não deve?

ele não respondeu, e para mim a resposta era escura como o céu nublado.