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O Bucho Enorme

  • Escrito em 2019

Sim, você quis saber da cicatriz, a cicatriz foi o seguinte. Quando eu tinha meus 12, 13 anos, a gente costumava brincar numa praça próxima a minha casa antiga.

Eu já era amigo do Douglas, do Nandinho, nessa época. Lá tinha um parquinho, com escorrega, gangorra, era ótimo, a gente adorava. Só que os bancos eram todos quebrados, com o ferro de fora, a coisa mais feia, daí os pais de ninguém queriam ficar por lá pastorando a gente em pé. A tia muito menos, a tia me deixava por lá e ia com o Caio pra casa da dona Ivone ficar conversando. Nossa, o Caio odiava, porque o Caio queria brincar com as crianças grandes e não podia, e a gente achava muito bom que não tinha adulto por perto e nem o Caio e a gente endoidava bastante. De vez em quando passava alguém numa bicicleta, era raro um carro que fosse. A gente aproveitava pra fazer muita besteira, brincava de peia, de quem falava o palavrão mais cabeludo, era bom demais.

Sendo que um dia começou a vir um homem que ninguém sabia quem era pelas bandas, e ele sentava no banco mesmo o ferro de fora, e puxava um saco ridículo de amendoim, e ficava sentado vendo a gente. E ficava lá o dia todo, como se a gente fosse circo, só olhando a gente. No começo os meninos odiaram, ficaram envergonhados, ninguém tinha coragem de dizer que era porque tinha um homem feio lá sentado só olhando a gente, sem fazer nada, sem ser pai de ninguém, perguntamos uns pros outros quem era, e ninguém conhecia. Daí a gente começou a brincar, dizendo que ele era caçador de talentos, e estava procurando o palhaço do grupo pra levar pro circo dele. Então ficamos, é o Douglas, vai lá, palhaço fedorento, vai pro circo do véi do bucho. E o Douglas ficava, vai tu, cão. Começamos a fazer mais estipulia pro homem ver, e começamos a nos mostrar, ficar de ponta cabeça, dar estrelinha pro homem.

Mas as meninas que vinham, a Tati, a Fernanda, as outras, elas não gostavam do homem lá, e não queriam mais brincar com a gente. E ficavam pouco tempo e iam embora bem mais cedo. Daí a gente achou muito ruim e ficamos, não vão embora, o véi não faz mal a ninguém além de ser feio. O Douglas também é bem feio e ninguém vai embora por isso. Mas elas não gostavam, e não queriam mais saber do véi por lá olhando elas. Nós queríamos sempre nos mostrar pras meninas, né? Daí a gente fingiu que éramos homens de coragem e fomos lá falar com o véi.

A gente planejou, vamos dizer que ele é tão feio que dói e ninguém quer ele aqui, que dominamos o parque e ele está banido, se ele achar ruim a gente quebra ele e taca fogo no amendoim ridículo. Mas quando chegando mais perto, a gente só conseguia olhar pro chão e um ficava esperando o outro falar.

Daí eu, muito amostrado, perguntei pro véi, o senhor é pai de alguém? E me senti idiota porque claro que não era, todo mundo tinha dito que não conhecia. E o véi, boa tarde, meu filho, não sou não, vim só sentar aqui pelo parque. E isso não fazia nenhum sentido, porque ele vinha todo santo dia. E a gente, o senhor é daqui das bandas? E ele, não, eu venho daqui de perto. O senhor conhece alguém? E ele conheço, conheço. E a gente ficou calado esperando ele dizer quem ele conhecia. E ele nada. E nada de ir embora.

Ficou um silêncio até eu ver o Douglas voltando, olhando pras meninas bem longe e indo em direção, aí eu disse, pois tá bom, boa tarde. Daí ele perguntou, vocês gostam de amendoim? E a gente queria ir logo embora, dissemos que não, obrigado, fomos pro outro lado da praça porque as meninas já queriam ir. Elas foram sem falar nada, perguntaram e aí? E a gente, caramba, esquecemos de perguntar o nome dele.

As meninas foram embora e a gente se perguntando o que fazia. Aí alguém disse, deixa esse véi aí, não faz nada com ninguém, olhar não arranca pedaço. Eu até queria amendoim. Mas as meninas não gostam, não querem mais vir pra cá. O véi fica olhando pra elas. A gente adorava colocar a culpa nas meninas pra alguém fazer algo pro véi ir embora, mas os meninos estavam todos achando ruim na verdade.

Daí alguém ficou, vou contar pra minha vó quando ela vier me buscar, ela vai expulsar o véi. Daí ficamos, não, os pais vão achar ruim a gente aqui, não vão mais querer que a gente venha, vão ficar pastorando a gente. Mas alguém eventualmente ia chamar o pai, a avó, o cachorro, alguém pra perguntar quem era o véi.

Eu sei que eu cheguei em casa e tentei perguntar pra tia se ela não sabia, com cuidado pra não dizer que ele ficava pela praça. E disse, tia, conhece um véi do bucho? E ela, o seu Diniz? E eu, não, seu Diniz não, um véi sem barba e bem vestido. E ela, quem é o véi daqui das bandas que é bem vestido? Parece que quanto mais véi mais quer se vestir com pano de chão. É seu Armando, véi feito cadáver? E eu, não. O seu Armando nem se veste. Quase sai só de cueca na rua.

E minha tia pertubando, que véi é esse? E eu não sei, um véi, e ela onde tu viu esse véi? E eu na rua, vi passando, não conheci, e quis saber o nome. Aí ela, que interessante seu interesse por véis. Sabia não. Não é o que eu gosto. Da próxima vez, espera ele parar, chega assim como quem não quer nada, e pergunta, boa tarde, qual o seu nome, Sr. Véi?

E um dia eu cheguei mais cedo na praça e fiquei pensando no que ela disse. E não tinha nenhum menino nem menina, era só eu no balanço, sentado, balançando as perninhas, e o véi me olhando e comendo amendoim. E eu pensei, quando os meninos chegarem eles vão me acovardar. Fiquei olhando pra ele. Fui andando em direção ao véi.

Aí cheguei, boa tarde. E ele, ó boa tarde, tudo bem? E eu, tudo. Qual seu nome? Aí ele, qual o seu? E eu achei ruim. E fiquei, qual o seu nome, bem afrontoso. Aí ele, ah, diz o seu primeiro. Não sei porque peguei tanto ar disso. Não faço ideia, mas peguei. Aí ele sem querer dizer o nome dele, e eu sem querer dizer o meu, e eu diz aí vai, diz primeiro que eu digo, daí ele diz rapaz, teu nome, que que tem. Aí eu, fala primeiro tu. E o véi calado, olhando pra mim.

E eu pensando, nem a pau que eu vou dizer meu nome, vou pensar num nome qualquer pra dizer, ele nunca vai saber. Mas aí pensei também, porque ele não diz um nome falso qualquer também? Mas o véi só calado, me olhando, parou de comer amendoim.

Aí eu, senhor, a gente quer que o senhor não venha mais pra praça. E eu comecei a suar muito e fiquei nervosismo, só olhando pra trás pra ver se aparecia alguém que eu conheço, as palavras só saíram assim da minha boca. Eu me consertei, perguntei porque o senhor vem? Aí ele, ah, é bonito ver vocês. Vocês são bonitos. Aí eu, é mesmo, e sem olhar pra ele, só olhando pro parquinho. E ele, você é bem bonito, cabelinho arrumadinho. E eu, meu Deus. Como eu me safo. Eu disse, brigado. E ele, senta aqui, e eu só olhando. E ele senta aqui, tem problema não, eu vou embora. E eu olhei pra ele com olhar de ?, senta aqui, vou embora e não volto.

Vai embora mesmo? E ele, vou. Aí eu sentei. Eu sentei e eu não sei mais o que me aconteceu. Eu só lembro isso, sentei.

Aí acordei de noite numa casa que ficava no meio do nada, depois das dunas, e tava tudo escuro, as luzes todas desligadas, mas era uma casa e eu deitado numa cama. Só eu, era uma cama pequena. E a janela estava aberta. E eu vi que dava pro telhado, e o telhado dava pro muro, e no muro dava pra pular e passar da grade da casa. E era ruim demais, é ruim demais acordar sem saber como dormiu, na casa de quem, como eu vim parar aqui. E eu me decidindo se tentava pular da janela pro telhado. E eu suando nessa cama. Aí escutei uns passos subindo as escadas, rapaz, eu meti o pé e me joguei pela janela e corri feito doido. Nem quando o cachorrão do seu Diniz perseguiu eu e o Nandinho que eu tinha corrido tanto na minha vida. Eu corri apenas. Só pensei em correr. Na verdade acho que desligou meu pensamento e meu corpo se mexeu sozinho, e correu sozinho, e quando eu passei as dunas, cheguei correndo em casa.

Aí eu desabei em casa porque não sabia quanto tempo tinha corrido, mas tinha sido muito muito tempo, e eu bufando, queria que fosse uma corrida contra os meninos, tinha humilhado eles todos, se minha casa fosse do outro lado do mundo eu tinha chegado sem parar pra nada. E minha tia, onde tu tava desgraçado, e eu o véi me pegou e me levou pra uma casa aí, e ela onde é esse véi, tá metido com véi, e eu não sei, eu não sei como ele me levou não. A tia lógico, queria ter com o véi, se a tia pegasse esse véi dava nos coros dele com o ferro de passar que ela é braba. Mas eu lá sabia onde era a casa do véi. Disse só que era depois das dunas. Ela disse que ia lá assim que amanhecesse. O Caio achou muito bom e disse que queria que o véi me levasse pra ele ficar com meu quarto e meus brinquedos. Já tava era dormindo na minha cama.

A tia foi atrás desse véi, e eu contei pro pessoal, e a praça ficou lotada de gente, nunca essa praça tinha tido tanto público, era o circo mesmo, todo mundo lá esperando o véi chegar pra ter com ele. E nada do véi chegar, é claro. E minha tia foi pra depois das dunas, e ninguém sabia quem era o homem, ninguém tinha visto na vida, quem é esse. Ela queria me levar pra reconhecer as casas, mas eu fiquei com preguiça. E ficou por isso mesmo.

Quer dizer, ficou não, que ninguém mais deixava a gente ir pra praça, e ninguém da gente pisou mais lá, e era ruim saber que a praça estava abandonada sem ninguém na gangorra. Agora a gente só se via se fosse na frente de casa, ou na sorveteria, ou onde ficava o circo mesmo. Mas a coisa boa é que a Clarisse não podia ir pra praça, a mãe dela não deixava ela ir. Mas pra sorveteria ela deixava. Então ficamos mais próximos e não seríamos o que somos hoje se não fosse o véi. Ela me disse depois, se vocês não tivessem ficado mais pela sorveteria, capaz de eu ter saído da cidade com meus primos, já que não tinha amigo por lá mesmo.

Pois é, foi isso aí. Ah, a cicatriz foi uma vez que a Clarisse derramou sorvete no chão e eu não vi. Escorreguei e fui com tudo no chão. Tá assim até hoje.