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O que vem de dentro

  • 11 de Janeiro de 2019

Um dia eu acordei sem nenhum domínio do meu corpo. Algo ou alguém começou a viver por mim, no meu lugar. No começo, eu não achei estranho — era como fazer tudo no automático, porque sua mente está distante, pensando em alguma coisa totalmente diferente. Achei que era alguma dormência ou remédio que havia tomado, algo assim — de vez em quando, eu misturo meus remédios pra alergia com bebida. Mas eu bebo muito pouco, esses remédios não tem tanto efeito colateral, e nunca havia me acontecido isso antes. Eu só acordei, e me apercebi com nenhum controle sobre eu mesma. Mas ainda assim levantei da cama, escovei os dentes, tomei banho, troquei de roupa, arrumei a cama, me pesei, e desci pra tomar café, da mesma forma que faço todos os dias.

Era como uma paralisia do sono, tais como ao que eu tinha quando era pequena, entre os 8 e 12 anos. Quando eu acordava, corria desesperada pra cama da minha mãe, dizendo que tinha tido um pesadelo horrível onde eu estava acordada, mais sem conseguir me mexer; lutava com tudo pra escapar e não conseguia. Só quando eu dormia de novo, depois de uma noite quase toda em claro. Ok, não era quase toda, exagero. Mas eu passava horas olhando pro meu quarto todo escuro, e isso é demais para uma criança que sua muito e não consegue respirar direito. Só que quando eu era criança, eu não me levantava, eu só ficava parada na cama. Por isso que chamam de paralisia do sono. Dessa vez, eu não tinha mais 12 anos — tenho 18 agora — e eu não estava nem um pouco paralisada.

Eu não me desconfortei de início porque achava que era eu. Eu fiz tudo que fazia todo dia, toda semana, todo mês. Eu não sei explicar. Era eu, na medida em que fazia tudo que eu sempre fiz, da mesma forma. Mas não era eu. Eu não movia meus músculos, minhas pernas, meus olhos. Tudo se movia por si só. Como se fosse eu. Mas não era. Não era, porque eu queria parar, eu queria me sentir no controle, e não estava. A minha mente estava lá, mas meu corpo se movia sozinho.

Eu só me desesperei quando desci e encontrei minha mãe. Ela me deu bom dia, e eu respondi. Perguntou se estava tudo bem, não estranhando nada, mas só perguntando da mesma forma como sempre fez; eu respondi que sim. Não queria dizer que sim; queria gritar, esbravejar, dizer que não, que algo ou alguém tinha assumido o controle do meu corpo e estava me carregando pra lá e pra cá, mas que ainda conseguia ver o que estava acontecendo comigo de dentro, como se fosse um filme sem minha direção. Queria segurar minha mãe, mãe, por favor me salva, não sei o que está acontecendo comigo, não fui eu que acordei hoje, eu ainda estou aqui em algum lugar mas quem quer que seja aí falando com a senhora não sou eu. Mas respondi só que sim. Estava bem. E estava procurando a manteiga.

Eu quis tanto chorar. Eu quis demais. Mas nenhuma lágrima caía. Os olhos nem ao menos ficavam vermelhos. Meu coração batia normalmente, no mesmo fluxo. E quando minha mãe me passou a manteiga, eu sorri agradecendo. Eu sorri. Eu queria morrer de chorar.

E essa outra coisa, ou outra pessoa, começou a viver a minha vida por mim, da mesma forma como eu fazia todos os dias. Quando ela deu a benção na minha avó, e deu um beijo na bochecha da minha mãe, eu quis esganá-la. Eu gritei, quem quer que estiver aí, quem quer que esteja fazendo isso comigo, eu vou te matar, sai de mim, larga da minha avó, fica longe da minha mãe, da minha casa, do meu corpo. Mas ninguém respondeu. E eu nem sequer gritei; percebi que pensava alto, que agora era tudo que eu podia fazer — olhar e pensar alto, enquanto meus lábios permaneciam fechados e não emanavam qualquer som.

Era como estar presa na própria mente.

Quis chutar, sair correndo, pedir por socorro, gritar, fugir, me jogar na frente de um carro, agarrar um estranho na rua e dizer, socorro, não sei o que está acontecendo comigo, não sou eu aí, me ajuda pelo amor de deus. Enquanto isso eu continuava andando para ir pro cursinho; parei na parada de ônibus, sentei e esperei. Sentei da mesma forma que sento todos os dias. Peguei o ônibus, da mesma maneira que pego todos os dias. Usei o celular no ônibus, da mesma forma que uso todos os dias. Falei com os meus amigos, da mesma forma que falo com eles todos os dias. Entrei em pânico, sufoquei. Mas meu coração batia normalmente, e eu respirava como sempre.

O pior, eu acho, era essa sensação de que era eu. Não era eu. Mas era como fosse. Era, porque eu fazia tudo como eu faria, eu acho que me conheço bem o suficiente, aquilo que me controlava fazia exatamente como eu faria. Os mesmos trejeitos, o mesmo comportamento, forma de falar, tudo. Isso me chateava imensamente. Quando sentei perto dos meus amigos, tentei puxar meu braço, tentei me levantar, tentei derrubar tudo. Meu corpo não me obedecia. Só obedecia a quem quer que estivesse me controlando, e fui incapaz de pedir por ajuda. Essa coisa, ou pessoa, ou sei lá, se passou por mim tão bem que os meus amigos tinham certeza que era eu, e falaram comigo como se eu fosse. Nem por um segundo eles duvidaram. No começo, senti uma grande traição deles. Da minha avó, da minha mãe. Poxa, vocês não conseguem me diferenciar dessa… coisa? Desse negócio? Não sou eu! Mas percebi que não podia culpá-los. Não podia culpar ninguém. Isso se comportava muito como eu. Fez o que eu faria. Ou o que eu achava que faria. E nesse dia assistiu aula, e fez exercício, e contou piadas, e usou o celular, e conversou com meus amigos.

Era eu, eu pensei. Será que estou ficando louca. Será que minha mente se despedaçou, uma consciência foi pra um lado, e outro lado foi pra outra. E eu era a outra, que ainda era mente, mas que não controlava o corpo. Não, não podia ser. Tinha que ser outra pessoa. Quem seria? Me controlando assim. Ninguém me conhecia tão bem. Falava que nem eu. Andava que nem eu. Não queria que fosse eu mesmo, não podia ser. Eu não estava mais no comando. Será que um dia realmente estive, pensei. Concluí que tinha enlouquecido. Não queria ter. Do fundo do meu coração, não queria ter enlouquecido. Mas o que é que estou falando? No fundo ninguém quer.

Eu passava o tempo todo tentando me rebelar, puxando os braços, me levantando de uma vez, gritando do topo dos meus pulmões. Nada. Nada acontecia. Percebi o quão inefetivo era só imaginar as coisas, e fazer nada sobre isso. Porque era o que eu fazia. Nada. Sei lá, quando você pensa, é automático, esse tipo de coisa, você quer piscar, você pisca. Mas se você quiser gritar, você se freia, eu percebi. Era como se eu sempre estivesse no freio. Eu não podia fazer nada, mas podia ver tudo. E assim, comecei a procurar algo que não era eu, algo que aquilo fazia que era diferente de mim. Sabe a sensação de se assistir gravada, tipo quando fazem um vídeo de você, ou gravam você falando e você não se reconhece, sei lá? Era exatamente isso comigo. Eu não me reconhecia, mas ainda assim sabia que era eu. Eu sou assim mesmo. Passei a me odiar, odiar meus trejeitos, odiar minha fala, meu comportamento, meu dia-a-dia. Essa não sou eu, eu ficava pensando. Eu não sou assim. Não sou eu de verdade. Não sou eu aí, fazendo isso. E odiei de novo meus amigos, e minha mãe, e minha avó.

E toda vez que alguém vinha falar comigo, eu olhava fundo nos olhos dessa pessoa e tentava fazer com que ela percebesse que não era eu realmente, tendo aquela atitude, ou aquele comportamento. Eu dizia, em alto e bom som, não sou eu fazendo isso, sou eu mas não sou eu, digo, é meu corpo, mas não sou eu. Nem sequer parece comigo. Não sou eu, não sou eu, não sou eu. Socorro. Socorro.

E ficava me atingindo, dizendo burra, não consegue acertar essa questão. Eu nem sabia se estava prestando atenção ou não nas aulas. As vezes eu acertava, as vezes eu errava. A teoria da consciência dupla começava a fazer mais sentido. Essa outra consciência estava aprendendo por mim, enquanto a outra eu ficava pensando em maneiras de fugir. Não tem escapatória dentro da sua própria mente. E fiquei desesperada, pensava que não queria pensar, quero parar de pensar, vou me desligar, e agora vai ser só eu, vou voltar a ser eu de novo, e assumir o controle. Mas nada acontecia. A prisão da mente não tem chave nem muito menos cadeado.

E quem me controlava passou o dia fazendo tudo por mim, e eu passei o dia assistindo. Xinguei bastante quem quer que fosse, falei ameaças, mal-dizia, disse que não prestava para nada, que não tinha futuro, que iria me matar e que tudo ia ficar tudo bem. Ninguém gosta de você, porque você não é realmente você. Eu jurava muita vingança, mas isso não parecia afetar nada nem ninguém. E tudo que eu fazia normalmente eu queria deixar de fazer: não vai por esse caminho, não bebe essa água, não fala com essa pessoa, não usa o celular, não curte a foto dessa pessoa, não faz isso, não faz. Não faz o que eu faço. E eu fiquei muito decepcionada comigo mesma.

No fim da tarde, essa pessoa combinou de ficar com um menino que eu queria muito ficar antes de ontem. Essa pessoa ficou feliz, contou pra todo mundo, balançou o pé por horas de ansiedade. Isso é uma coisa que eu faço. Mas agora eu não queria ficar com esse menino. Eu não queria mais, pelo amor de deus, não fica com ele, eu não quero mais. Eu quero acordar e ser eu de novo, eu quero poder fazer o que eu quiser, chega de viver no automático. Mas essa pessoa sorriu de ponta a ponta, eu pude sentir, e foi lá ficar com ele. E foi horrível. Tentei chorar de novo, não consegui. Foi, sei lá. Foi como um estupro. Eu não queria ter usado essa palavra, desculpa. Eu não usei. Não foi. Mas ele me tocando, a língua dentro, e eu me solta, me solta. Mas o meu coração batia rápido e era como se eu pudesse sair correndo. Mas eu não podia. Eu queria dar um murrão nele, dizer é outra pessoa, desculpa, você é um fofo, mas hoje não. Não hoje que eu não sei o que sou ou o que está acontecendo comigo. Mas fiquei com ele. Sorri de ponta a ponta. Ele também.

Depois disso, decidi que não era eu e desbanquei a teoria da mente dividida. Estava sendo controlada. Sei lá, bruxaria, vudu, controle mental, qualquer coisa. Tinha lido algo sobre os celulares meio que saberem o que você está pensando, algo assim, pra te mostrar propaganda direcionada à você. Deve ser isso. Só pode ser.

Nesse dia eu fui dormir, e fiz bastante força pra ficar acordada, não sei porque, só porque queria ir contra tudo que esse meu corpo estava propondo para mim. Eu não sou meu corpo. Não estou com sono, não vou dormir, e acabou. Não vou fechar os olhos. E foi horrível, porque fechei e não consegui abrir de forma alguma. Senti-me enterrada viva. Paralisia de sono. Mas logo dormi, e a dor passou. Não sofri tanto.

Eu queria ser uma guerreira, mas não sou. No segundo dia, eu acordei. E era a mesma coisa. Lutei um pouco, observei mais um pouco, xinguei mas um pouco. Mas nada acontecia. E cansei. E me limitava e me assistir vivendo, dia após dia, ato após ato, pensando, não sou realmente eu. Eu não faria isso. Não sou eu aí fora. Não disse isso. Eu não diria isso. Eu não sou assim. Não sou eu.

Cansei. E entrei numa espécie de letargia, observando tudo de fora, um filme sem fim, e pensava o que vai acontecer agora, o que ela vai fazer. Percebi que minha vida era altamente desinteressante. De se assistir, pelo menos, de viver talvez fosse mais legal. Não sei dizer, não me lembrava. E as vezes eu me distraía daquela situação voltando à lembranças, criando histórias fantásticas na minha cabeça, planos para o futuro. Coisas que eu faria, se eu pudesse. Se eu tivesse como fazer. Se eu tivesse um corpo funcional. Nunca voltaria pro cursinho, eu planejava. Iria andar de bike pelo mundo. Visitar a torre Eiffel. Tentar ficar com a minha amiga. Ela me deu bola algumas vezes. Porque nunca fiquei? Que coisa tosca, né. Esses pequenos desejos. Eu queria ter conversado mais com a minha avó. Vou conversar sobre tudo, quando sair daqui. Vou perguntar como ela conheceu o vovô, o que acha da mãe quando ela põe música alta pra tocar quando ela vai assistir novela. Vou perguntar o que ela acha da novela. Penso na novela, só pra me distrair. A vida numa prisão é distração, alguns pensam, mas a vida em liberdade é tão distração quanto, eu acho. Tem gente que vive uma vida toda se distraindo e gente que morre de distração. Se eu tivesse controle do meu corpo, eu levava minha amiga pra ficar comigo na frente da torre Eiffel, vamos chegar lá de bike. Vou levar minha avó na garupa. Eu ri, que besteira. Na verdade, eu não ri e me doeu perceber isso. Doeu, mas não tive vontade de chorar. Eu não ia chorar mesmo, pra quê então.

Passou-se uma semana inteira. Domingo essa pessoa foi pra praia com meus amigos. De tarde, revisou o conteúdo pra prova da próxima semana. De noite, assistiu novela com a avó. Ficou indecisa se saía de novo com o menino no domingo, eu vi a janela dele aberta e ela apagando e escrevendo a mensagem. Decidiu que não. Ela é orgulhosa, só quer saber dele agora se ele vier mandando mensagem do nada dizendo que foi bom ficar com ela e que eles podiam se ver depois. Eu a conheço muito bem. Ela foi dormir, ou tentou; por muito tempo ficou parada olhando pro teto. Queria saber o que pensou, por tanto tempo. Deve ser se lembrando das fórmulas que tinha que decorar pra prova.

Ela acordou no meio da noite. Também acordei. Foi até o espelho do banheiro, acendeu a luz se olhou fundo nos olhos. Pela primeira vez, senti que olhava para mim, mas achei que pensava na prova ou algo assim. O que foi, eu perguntei. As vezes eu falo com ela. É um hábito que peguei quando costumava xingá-la. Ainda a xingo de vez em quando. Está sem sono? Deve ser a alergia. Bebe uma água, e vai dormir. Amanhã cedo tem aula. Ela continuava olhando fixo para os próprios olhos pelo espelho. Será que está tentando falar comigo? Será que me vê, sabe que estou aqui?

Ela falou, olhar fixo no espelho. “Obrigada. Você pode ir agora. Nos reencontramos depois.”

Apaguei. Tudo escuro, paralisia do sono. Quando acordei, no dia seguinte, tinha controle do meu corpo.

Até hoje, de vez em quando tenho um tique nervoso e meu braço faz um breve movimento estranho. Isso é só pra ter certeza de que eu tenho controle sobre mim.