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Homens sem Mulheres

  • 26 de Julho de 2017

Acho que agora são três e pouco da manhã. O visor do carro mostra o horário, mas não tenho certeza se alguém ajeitou isso. Estava errado da última vez que vi. Mas não deve estar tãooo diferente das três da manhã assim. Eu acho que são mais, mas não tão mais, sabe.

Eu dirijo o mais rápido que dá pra dirigir sem parecer uma corrida. Sem parecer que estou fugindo da polícia, sei lá. Me ocorre agora que isso pouco importa — nessa velocidade ninguém vai poder fotografar a placa. Quer dizer, porque alguém faria isso, né? São tipo três da manhã. Todo mundo corre às três da manhã.

Eu não pedi por isso.

Toda vez que eu me pego olhando pra esquerda, eu olho pro Jonas. Toda vez que eu olho pro retrovisor, eu olho pro Lucas. Eu já percebi que tô tentando dirigir só olhando pra frente. Todo cruzamento que eu faço é meio perigoso; mas tenho interesse em qualquer coisa que não me fizer lembrar do Jonas e do Lucas.

Tô tentando pensar em qualquer coisa. Literalmente qualquer coisa. Não está funcionando; eu tive que parar no sinal agora porque lá vinha outro carro muito perto da gente. É a hora perfeita pro Jonas, sei lá, me dar um chutão, me matar aqui mesmo no meio do nada às três da manhã, porque o carro tá parado. É assustador. Dá pra ouvir o sangue correndo nas veias.

O Lucas deu um fungadão aqui atrás, eu tomo um puta susto.

Só que ficou nessa, sabe. Eu paralisado pelo fungadão. Lucas é um nojento. Me ocorreu que eu deveria externalizar isso. Lucas, tu é um nojento.

Foi quando ele me respondeu “quê?”, que eu percebi que tinha dito isso alto. Eu chamei o Lucas de nojento. Vou deschamar.

“foi por causa do fungado. o fungado que tu deu agora”.

“quê?”

O Jonas olhou pra mim. É agora, ele vai me matar. Nunca mais na vida eu vou fungar.

“eu preciso soltar o mijão”.

“quê?”

“eu vou dar uma mijada, aguenta aí”.

Eu dou um pulo pra fora do carro, porque assim eu não preciso escutar o Lucas repetindo quê feito um papagaio. Eu caminho até o primeiro poste que eu encontro, e vou começar os trabalhos. Me ocorre que meu trocinho tá tão nervoso quanto eu.

“força, colega”.

Barulho de batidão de porta, pra quebrar mesmo. Não me surpreende se tiver quebrado. No fundo estou até tranquilo — significa que o Jonas não ligou o carro e está dirigindo pra cima de mim pra me atropelar.

“porra, você faz porta de carro ou o quê?”

“o quê?”

“cala a boca, Lucas”

O Lucas sai correndo atrás do Jonas, dá pra ouvir atrás de mim. Meu coiso meio que me olha como quem diz, “cara, pela primeira vez na sua vida eu sou o menor dos seus problemas. vai fazer algo sobre eles” Mensagem captada, Senho-

O Lucas e o Jonas dão o maior encontrão nas minhas costas. Quase cai todo mundo no chão, menos o meu bregelo.

Eu caio no chão. Eu tô pensando tanta merda, mas tanta merda. Eu não devia ter bebido tanto. Eu ia dirigir. Eu nunca mais vou dirigir. Eu vou vender esse carro, e com o dinheiro só vou andar de Uber. Toda noite eu vou bodar, como eu deveria estar bodado hoje pra não ver o que aconteceu.

“ei, Lucas. me ocorreu agora que você não bebeu tanto quanto eu. porque você não está dirigindo? dirige, Lucas. a chave tá na ignição”.

“cara, veste essa bermuda pelo amor de deus.”

“quê? ah.”

Nada demais.

Fica todo mundo se olhando, menos o Jonas. O Jonas olha pro nada, procurando alguma coisa que ele não vai achar, porque não ele não tá olhando pra nada.

“então, gente, vamo voltar pro carro, e ir pra casa? aqui é o meio do nada. ouviu, Jonas, meio do nada, não tem nada, n-a-d-a. Lucas, diz pro Jonas que não tem nada. outra — o horário do carro tá errado. não é muito errado, mas toma cuidado que a hora que ele diz é outra que não a certa”.

Acho que o Lucas não se ligou no relógio, porque ele se sentou no meio fio e olhou pra baixo. Acho que vai vomitar, o coitado. Queria vomitar como o Lucas. As vezes eu queria muito ser o Lucas. A ex dele é muito gata, sabe, e ele nem é essas coisas toda de bonito. Lucas é feio arrumado.

“se liga, Lucas, e para de dizer quê. para de vomitar também, deixa pra vomitar em casa. tu é muito nojento.”

“nojento é você, seu filha da puta”

Não foi o Lucas que disse isso, porque o Lucas tá tentando se levantar pra salvar minha vida. Tudo está dormente em mim; no Lucas deve ser o mesmo porque ele nem levanta direito. O coitado. Deve estar tentando salvar minha vida do Jonas. Deixa pra lá, Lucas. Deixa o Jonas me matar aqui no meio do nada, pega o carro e vai pra casa. Ele é seu agora; eu vou criar asinhas e vou navegar o paraíso voando.

“porque eu sou nojento, Jonas? o Lucas é que fica escarrando e eu acho horrível”

“pára, Jonas, por favor. amanhã a gente faz isso”

“pode deixar, Lucas. vai vomitar, vai”

“Rafa, puta que pariu. puta que pariu, Rafa. não te ocorreu um minuto que eu iria saber que tu tinha pensado em tudo? que não teve a menor graça o que tu fez? que agora tá muito difícil te ver como amigo, porque esse tipo de filha da putagem não é o que amigos fazem uns com os outros?”

“Jonas man, deixa o Rafa, véi. o cara não pensa. eu concordo que isso foi longe demais, mas nada que tu falar vai fazer ele se tocar”

“já deu, cara. já deu. eu sei que ele não se toca, mas eu preciso desabafar. eu preciso dar uns tapa nele. Rafa, tu é um palhaço. a galera só gosta de te levar pros rolês pra rir da tua cara. porque tu é engraçadinho, tu fica bêbado e faz besteira estranha. ninguém gosta de ti, cara. se toca.”

Tudo está dormente.

“Jonas, tá despejando tudo no Rafa. nem tudo é ele, se acalma”

“Lucas, eu tô me sentindo um lixo. sabe como é isso? é tipo, eu tava rezando pro Rafa bater esse carro agora pra eu não ter que lidar com mais nada amanhã. pra eu não ter que tocar minha vida pra frente. porra. nosso grupo de amigos era tudo que eu tinha. essas festas eram tudo que eu tinha. cacete, o que vai ser da gente? vai ter a gente? porque eu não acho que eu vou suportar olhar pra cara de nenhum de vocês por um bom tempo. Na real, eu não quero olhar pra cara de ninguém por um bom tempo.”

“gente, vocês já perceberam que toda vez que o Jonas fala dá um parágrafo inteiro, e, e, quando eu vou falar, só dá uma linha ou duas, porque eu sei manter as coisas concisas? sejam concisos, galera. me digam o que aconteceu, e eu direi como posso ajudá-los”

Nessa hora eu acho que o Jonas me encheu de porrada. Torta de porrada. Não importa, tudo tá bem dormente. Eu caio no chão e lá é que eu fico.

Jonas e Lucas sentam do meu lado, e eu duvido que seja pra prestar assistência médica. Eu trocava meus dois amigos por um kit de primeiros socorros. Na verdade eu só trocava o Jonas, porque ia precisar do Lucas pra me aplicar os primeiros socorros.

Estou estirado no chão, olhando as estrelas. Acho que vou pro céu, Deus é fiel. Lágrimas e sangue agora são a mesma coisa.

“foi mal, Jonas. foi mal, Lucas”

“tudo bem, cara. tudo isso vai passar”.

Filha da puta, quero ver se meu dente volta pro lugar.

“eu fico me lembrando da gente entrando, de mãos dadas, dançando junto, muito massa. depois a gente se despedindo da galera, indo pra casa dela… nunca mais, cara. nunca mais vai ser assim. nunca mais eu vou acordar com a Júlia.”

“…”

“cara, e pensar que a Júlia ficou com toda a galera. todos os amigos e amigas dela. porra, eu achava eles gente boa.”

“pensa assim, ó, ela provavelmente deve ter combinado com todo mundo antes porque na hora ninguém ficaria com ela”

“porra, só tu pra encontrar otimismo numa situação dessas.”

Eles riem. Que humor engraçado, o deles. Não vi graça, inclusive.

“que merda, cara. eu realmente gostava da Júlia. sério. não era só um fica, não. eu só fingia que era.”

“cara, por quê? por quê?”

“não sei, cara. acho que eu lembrei de ti e da amanda.”

“…”

“no final das contas eu acho que queria ser que nem vocês dois, sabe? vocês eram muito perfeitos. vocês tinham momentos perfeitos. mas vocês eram muito apegados. eu não aguentaria passar pelo que vocês passaram”

“mas sei lá. foi bom enquanto durou, né? essas coisas da vida acontecem em algum momento. não nega tudo o que aconteceu de bom antes”

“mas cara, eu já tô aqui sofrendo pela júlia. e eu só gostava dela. nem era paixão nem nada. imagina se eu amasse alguém, e a pessoa só fosse embora assim. eu morria, sério. relacionamento sério não é pra mim. acredite”

“você não tá fugindo de alguma coisa?” — eu pergunto enquanto observo estrelas cadentes.

“quê?”

“tipo, eu vi uma estrela cadente agora. pareceu que ela estava fugindo de outras estrelas, porque elas estavam tão juntinhas. as estrelas devem ter medo de se juntarem porque elas já estão vivendo num futuro sem a estrela que elas gostam”

“cara, você não fala coisa com coisa e eu te adoro. as vezes eu quero que você amadureça, as vezes eu quero que não.”

“as vezes eu penso que só queria que tudo desse certo pra todo mundo. mas nunca vai dar, né? não, vai não, e é isso que move as pessoas”

Eu me levanto num pulo. Tontíssimo. Cambaleante. Eu observo dois imbecis sofrendo por amor. Só o que eles queriam eram ser amados, tarefa tão fácil mas que eles dificultam tanto. Tudo que eu quero é estar banhadinho na minha cama cheirosa.

“nós três somos homens sem mulheres. Lucas, você é homens sem mulheres nem homens, visto que aparentemente quer dar beijos nos dois”.

Eles riem, dessa vez do humor verdadeiramente engraçado.

“Eu digo pra vocês uma coisa. continuem vivendo. continuem se apaixonando, continuem quebrando a cara feia de vocês. o que importa no final são as experiências e as boas histórias pra eu escrever depois

Homens Sem Mulheres caminham até o carro. Surpreendentemente ninguém foi roubado ou assassinado essa noite, o que é um milagre se você considerar que são três da manhã em Fortaleza. HSM Rafa entrega a chave pro HSM&H Lucas. Eles dirigem totalmente incertos de como vai ser amanhã quando não for mais três horas, mas pouco importa. O coraçãozinho deles se endurece e cria mais resistência à cada nova quebrada de cara.

A gente ainda vai se divertir muito e passar por mais merda ainda. Mas não me deixem ser HSM sozinho. Senão eu juro que viro outro litrão, pego meu carro e atropelo vocês.