Como Produzir Hoje uma Imagem que Queima?

14 de Outubro, 2020, por LeviS

Burning Image

Buscar editoras para publicar sua mais recente série de fotografias não foi tarefa fácil para o artista e publicitário holandês Erik Kessels. As reações eram todas muito similares: suas imagens eram consideradas "chocantes" e que o público estaria "aterrorizado" diante delas. O motivo talvez resida no fato de que as fotos retratavam seus filhos, crianças pequenas, acidentados, chorando e exibindo escoriações sangrentas no nariz, no olho ou no lábio.

Kessels surpreendeu-se com a reação negativa recebida por público e crítica. Sua intenção enquanto artista, segundo ele, era a de "mostrar orgulho da sua prole", uma "nova forma de criar um vínculo com as crianças". Eles deviam portanto criar uma outra relação com seus machucados; um orgulho - fabular em cima dos seus arranhões, talvez como um símbolo de resiliência, uma cicatriz de batalha, estampado como uma medalha. Muito talvez o artista mudasse de opinião caso fosse o fotografado ao invés do fotógrafo.

Em todo caso, a experiência da recepção dos outros às fotografias fez com que Kessels ressignificasse a obra, oferecendo um novo discurso para acompanhá-la:

It seems that we' ve created a series of rules by which children should be photographed. Kids must be always laughing, always happy or always doing charming things. I believe these shocked responses have to do with the fact that we've been taught to interpret pictures in one very particular way. A setting sun is always romantic and a kid with a bloody nose has of course been the victim of some adult predator. (...) This saddens me, because reflecting on an unpleasant occurrence can give you insight and broaden your perspective. I want images that reflect life in its complexity.

A reflexão do fotógrafo acerca de como interpretamos e reproduzimos imagens no tempo em que vivemos encontra paralelos não só na sua própria carreira artística, como também nas obras de muitos outros artistas contemporâneos, abrangendo trabalhos em fotografia, cinema, webarte, new media e mais. Quem sabe podemos atribuir ao movimento dada (como muitos outros aspectos da arte contemporânea) a predileção pela colagem, a justaposição por vezes absurda de elementos do dia a dia para, graças a atmosfera de foco ou de "aura" que é próprio da arte (ou do ambiente do museu ou da galeria), possamos reinterpretá-los e produzir novo pensamento sobre eles.

Em busca de um foco ao máximo na banalidade contemporânea, alguns das obras ocidentais do início do século eram constituídas de puro e simples lixo. Picasso colava trechos recortados de jornais em suas pinturas; Hannah Höch foi uma das pioneiras da fotomontagem (e suas obras podem se passar por terem sido criadas hoje muito embora a maioria delas datam os mais de 100 anos). Alguns levaram o conceito do artista-reciclador para as últimas consequências e venderam o próprio adubo, como ficou historicamente famoso Piero Manzoni pelo seu elegante "Merda d'artista", de 1961. No Brasil, nosso exemplo com mais ares de celebridade é talvez o paulista Vik Muniz, cujos trabalhos exibidos nos museus de Londres, Los Angeles, Nova York e de Minas Gerais são compostos por calda de chocolate, ketchup e também lixo.

O entulho produzido pela nossa sociedade, descartado para longe dos nossos olhares e nossa atenção, para se juntar a montanhas de detritos que hoje cobrem quilômetros de terra, mar e até o céu, é recuperado por artistas para que possamos refletir sobre nosso consumo desenfreado e sem paralelos na história da humanidade. Utilizamos os recursos de mais de dois planetas terras para manter nosso estilo de vida confortável como gostamos dele; embora vivamos numa lógica de fast-food, consumindo e descartando produtos quase que diariamente, todos os dejetos gerados por nós convenientemente desaparecem da nossa vista (também instantaneamente), e vão da lata de lixo mais próxima para em direção ao córrego ou oceano mais distante possível da nossa convivência.

Nada mais lógico que o olhar do artista contemporâneo, agora tornado "conceitual", se interesse por um ativismo da arte: uma obra que faça comentário e crítica dos tempos (e da lógica) em que vivemos ao invés de buscar somente por uma "beleza" estética da arte (essa discussão, ao menos no campo teórico, já se foi).

Artistas como Constant Dullaart, Richard Prince e o já citado Erik Kessels refletem sobre nossa produção e consumo "fastfoodiano" não apenas no que diz respeito a produtos industrializados, mas também sobre a maneira na qual postamos e observamos mídia online - entre fotos, desenhos, memes e até a própria arte. A obra retratada no início desse ensaio (também de autoria de Kessels) trata-se exatamente disso: um milhão de fotografias empilhadas, numa quantidade tão massiva que torna-se uma escultura espécie de oceano ou duna; cada uma delas foi postada no Facebook, Google ou Flickr num período de apenas 24 horas.

"We consume images so fast nowadays, that I was wondering what it would look like if you physically printed off all the images that became available in a 24 hour period (...) When you're downloading them and you have one million images on a server, that's not impressive but when you print them out and put them all in one space, that's when it really overwhelms you."

Nesse depoimento, o artista atesta que no momento em que ele dá materialidade ao lixo digital, podemos ver quão maciço de fato é essa produção e esse consumo. Segundo ele, não apenas os visitantes podem caminhar sobre "memórias pessoais", mas também revelar o quão "públicas suas fotos privadas se tornaram" e quão preocupante pode ser o clima de normalidade no qual agora pertencemos (e não nos interessamos em disputar). Milhões de imagens nos bombardeiam todos os dias na tela do celular, do computador, da televisão, nos postes, nas paredes, nos outdoors; todas igualmente conclamando nossa atenção e interpretação. Logicamente não fomos treinados (ou nos seria minimamente útil) para analisar cada uma dessas imagens: muitas delas são lixo visual, imagens fast-food, e no momento em que primeiramente as visualizamos, tratamos logo de descartá-las, ávidos pela próxima imagem.

Essa é a lógica tal das grandes redes sociais, como o Facebook, o Instagram e o Pinterest (exatamente de onde Kessels retirou as imagens para compor seu oceano fotográfico). Essas megacorporações se aproveitam de uma certa "excitação pela imagem" que temos para banhar nosso olhar, sempre com uma imagem nova, e melhor ainda: imagens que diretamente nos dizem respeito e nos interessam. Imagens de familiares, de amigos, de queridos, de animais fofinhos, de política, ou seja lá qual é a imagem que desperta sua atenção e vontade. O fluxo de imagem é virtualmente infinito, justamente porque nós somos os produtores. Tanto consumimos como produzimos novas e novas imagens nos utilizando da máquina fotográfica: quase três bilhões de pessoas, quase metade da população de todo o mundo, possui uma conta no Facebook e provavelmente possui uma câmera fotográfica, ou um aparelho celular, ou tem acesso rápido e fácil a alguém que tenha. Quase metade de todas as pessoas é capaz de produzir e reproduzir novas imagens.

O oceano de Kessels nos intercala todos os dias: essas montanhas de fotografias nos é pitoresco e aterrador porque dá uma dimensão material à elas, ocupa espaço; transformada em monumento, torna-se maior que nós e apta a nos engolir. Nas telinhas minúsculas do nossos celulares elas aparentam ser inofensivas: deslizamos a tela ou a apagamos e rapidamente as imagens somem e não tem mais nada a ver conosco. Mas, sendo os aplicativos citados sedentos por nossa atenção e uso, no momento em que nos livramos de uma imagem nos deparamos com outra, e outra logo atrás dela, e uma em cima, e outra do lado, e rapidamente estamos cercados por imagens, invadidos por elas.

José Saramago, escritor português, citou uma vez o "Livro dos Conselhos" ao escrever "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara". Como se demorar numa imagem, tentar decifrá-la, produzir pensamento e reflexão sobre ela, quando já temos que em breve analisar e decodificar uma outra imagem, após outra, após outra? Diversos estudos, variando em complexidade, detalham que a atenção das pessoas é fraturada pelo uso da internet, suas memórias pioram com o tempo muito mais cedo do que em épocas anteriores. Isso tanto porque muito mais coisas demandam atenção, num fluxo constante, como também são feitas para o desgaste, para que sejam observadas em uma fração de segundos e que logo suma para uma pilha invisível de imagens o mais longe possível do olhar.

O que é possível depreender dessa nova experiência de contato com a imagem? E ainda, o que ela ocasiona para nossa "alfabetização visual", isto é, nossa habilidade de decodificar, interpretar e entender imagens?

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Para Georges Didi-Huberman, historiador e crítico da arte francês, existem maneiras de utilizar a técnica da montagem (ou colagem) de diferentes fotografias, justapostas próximas umas às outras, para dar um novo significado à elas: "uma forma de conhecimento visual chamado atlas". O atlas nasce como obra final do pesquisador e historiador de arte Aby Warburg, nascido na Alemanha em 1866. É nomeado o "Atlas Mnemosyne", fazendo referência a antiga deusa grega da memória, a mãe das musas; consiste em cerca de

(...) "mil reproduções fotográficas com grampos sobre painéis forrados de tecido preto. A última versão do Atlas Mnemosyne continha, por fim, 63 painéis de 170 por 140 centímetros, a serem publicados de forma que todos os detalhes das ilustrações se mantivessem visíveis".

Essa nova maneira de dispor múltiplas e aparentemente desconexas imagens para delas obter conhecimento hoje em dia já não nos é estranha, e ultrapassa em muito o universo da arte ou das teorias do conhecimento. É a forma na qual são criados "moodboards", apresentações de slides; até policiais a utilizam para traçar rotas e conexões de possíveis suspeitos de crimes. Mas a mais comum utilização do atlas seja a de buscadores da web como o Google ou o Pinterest, cujas ferramentas vasculham o oceano da internet em busca de imagens que dialogam entre si por meio de uma ou mais palavras-chave comum ou mesmo indexador.

Mas no início do século, tal disposição era única e praticamente não encontrou percursores na história. Aby Warburg propunha, de acordo com Didi-Huberman, "uma grande virada para entender o que são as imagens (...) em que podemos reconhecer uma história da imaginação humana". Sua busca era de uma nova teoria da imagem, forma inédita de compreender e estudar a cultura visual, separando-se do estudos tradicionais e formais da história da arte da época à procura de uma nova formulação da ciência da imagem. Nesse sentido, se aproxima mais da antropologia, arqueologia e psicologia para estabelecer sua teoria. Warburg entendia a arte renascentista, a qual também estudava avidamente, não como simples "revivalismo" mas como recuperação de um "mecanismo inconsciente, próprio da memória coletiva, e portanto capaz de se manifestar através de sintomas":

Tal justaposição de imagens tão diferentes entre si (variando entre panfletos, detalhes de pinturas renascentistas, fotografias de sua época, ilustrações de jornais) criava um panorama que misturava diferentes épocas históricas, territórios geográficos e diferentes povos, procurando tecer conexões visuais e pictóricas entre eles:

"A menina em viagem no flyer do anúncio é uma ninfa decadente, assim como o marinheiro é uma Nice”, anotou Warburg em 1929 em seu diário sobre a sobrevivência de gestos e motivos comuns na Antiguidade que continuaram sendo usados na arte comercial dos anos 1920. Para demonstrar essa perpetuação, Warburg utilizava reproduções de pintura, arte gráfica e escultura, bem como mostras de arte aplicada: carpetes, painéis genealógicos, fotografias ou anúncios publicitários. Ele chamava seu atlas de imagens de“histórias de fantasmas para adultos”.

Sua interpretação das mais diversas obras colocava lado a lado figuras consideradas de "baixa cultura" como o design publicitário e de "belas artes" da antiguidade, a fotografia de ''gentlemen'' de sua época e a tradicional tribo dos Navajos americanos - todos possivelmente interligados por uma mesma intenção de gesto, de movimento e de sentimento.

Warburg sustentava aquilo que nomeava "Nacheleben" (um conceito de difícil tradução que traça conexões com a palavra "sobrevivência", mas que também é traduzida como "pós-vida"). Diante do seu Atlas Mnemosyne, seria possível enxergar a "pós-vida" de certas gestualidades, símbolos, impulsos e motivos que perduraram nos seres humanos desde a era primitiva até os tempos modernos, tornando visível uma certa inconsciência coletiva ou memória social compartilhada por todos. Formam-se portanto "pontes entre os séculos, quando não entre milênios, e isso de maneira concisa e sem palavras."

Apesar de trabalhar sozinho de forma autônoma, desassociado das grandes universidades e também negando o método acadêmico tradicional, o pensamento e a história de Aby Warburg foram retomadas anos depois por grandes historiadores da arte como Ernst Gombrich e o já citado Didi-Huberman, interessados em conhecer como o Atlas pode servir de modelo para um novo estudo das imagens, que permite que as próprias figuras discursem sem necessidade da bengala teórica das palavras para se sustentarem.

O quanto a justaposição de diferentes imagens pode nos ajudar a compreender nosso próprio tempo?

A obra de Erik Kessels, o oceano de fotos, está longe de ser um atlas como o de Warburg - suas imagens, apesar de capazes de tecer relações e conexões entre umas as outras, indicam muito mais uma bagunça do excesso do que a organização das similaridades teóricas. Aby Warburg seleciona com esmero cada uma de suas mil fotografias, num gesto curatorial e intencional muito claro; em contraponto, Kessels imprime arbitrariamente um milhão de imagens e as posiciona no chão, onde somos convidados a pisar sobre elas, atravessa-las. O atlas convida ao pensamento e a reflexão enquanto o oceano se põe bravio e imponente; o primeiro se assemelha a uma biblioteca ou arquivo enquanto o segundo parece mais um depósito de lixo.

Mas é precisamente essa a diferença entre o consumo e a produção de imagens que fazemos hoje, e a que se fazia na época na qual o atlas foi concebido. Nesse momento da história a fotografia já se proliferava no mundo e sua reprodução se tornava cada vez mais barata e acessível. Mas poucos puderam prever o que ela se tornaria nos dias de hoje, numa era na qual sua produção e reprodução pode ser feita praticamente sem esforço com o apertar de um único botão. O que podemos depreender hoje da multidão de imagens que se põem diante de nós todos os dias? Seriam elas, quando conjuntas, capazes de nos dizer algo além, como o Atlas Mnemosyne? Ou se aproximam mais do oceano de Erik Kessels?

Um sanduíche feito rapidamente num fast-food dificilmente vai poder competir diretamente com uma refeição completa feito com preparo e esmero; geralmente os dois alimentos têm qualidades nutricionais muito diferentes entre si. Assim é o nosso consumo de imagens: se treinamos nosso olhar para consumir largas quantidades de imagens, num período pequeno, logo treinamos nosso intelecto para capturar rapidamente seu sentido e nossa memória para brevemente esquecê-las. O depoimento de Kessel agora não parece tão estranho: acostumadas a inferir um único e rápido significado às fotografias a sua frente, as pessoas logo atribuíam a ele uma visão de pai abusivo com os filhos, cujos machucados retratados eram a prova de sua violência e desqualificação paternal.

Como treinar o olhar? Como convencer alguém a passar mais do que alguns segundos contemplando uma única imagem, ou obra, quando sua mente já está ávida para consumir a próxima, e a próxima?

Ao meu ver é muito prejudicial a maneira na qual nos acostumamos a consumir imagens nos dias de hoje; talvez seja necessário pensar uma reeducação visual, um alfabetismo imagético que capacite o leitor de imagens não a de buscar imediatamente o significado de determinada imagem mas a de decodificá-la, examinar sua intenção, colocá-la a prova, criticá-la e se possível, voltar-se à ela. As vezes por fim não compreendê-la, mas buscar entre outros seu significado. Investigar como é produzida, montada, pensada e qual seu posicionamento; como atravessa (ou não atravessa) outras pessoas.

A ciência da imagem ainda está na sua infância, principalmente se comparada com a educação por meio da palavra ou do texto escrito. Reconhecer a capacidade de discurso da figura é deixá-la talvez que fale por si só, e subsequentes teorias da imagem podem se inspirar no atlas de Aby Warburg e produzirem reflexões e ensinamentos sobre o pictórico que se utilize apenas disso - do pictórico.

Georges Didi-Huberman certa vez escreveu um ensaio nomeado "A Imagem Queima"; sua visão incendiária propõe que a imagem tem uma potência desconcertante, ela "se inflama e por sua vez nos consome". Ela cria desejo, nos gera urgência, intenção; faz pulsar e faz sentir. Mas a multiplicidade de clichês no que vemos, ou seja, os elementos que são tantas vezes repetidas (e por isso facilmente decifráveis) que já não nos despertam atenção ou interesse "apagam" a chama da imagem, a fazem banal.

Proponho então aos artistas dos nossos tempos a seguinte indagação: como produzir hoje uma imagem que queima? Como criar uma obra, ou produzir uma foto, que se sobressaia, que rompa e subverta expectativas e clichês? Que queime, que gere vontade, que nos mova, que nos faça sentir?

Enquanto artistas, estamos diante de um perigoso impasse - ou nossas obras se tornam uma entre várias, destinadas a queimarem rumo ao esquecimento, ou elas se tornam como fênix, perdurando-se quentes no coração de quem as confronta.

Italian museum burns art to protest austerity cuts - CNN