Rei Noite
Conta-se a história de um cavaleiro que, durante uma caçada, foi abandonado pelos seus senhores para morrer nos vales íngremes da Montanha da Morte, e agonizava desesperado na fria terra enquanto seus inimigos cavalgavam em sua direção para emboscá-lo. A noite, como é sabido, é mais escura nos Vales da Morte, e portanto mais presente, e calhou de escutar atenta os lamentos do cavaleiro em seu leito. E soube, junto com ele, que tudo era planejado a muito antes, e seus senhores o tinham como amigo, quando em segredo conspiravam por suas costas; e todas as riquezas e glórias que haviam prometido à ele não passavam de ilusões, sustentadas por anos a fio, para que naquela noite, naquele vale, eles pudessem entregá-lo às sombras da morte, e sacrificá-lo nas mãos dos inimigos que os seguiam, para apagar seus rastros.
O cavaleiro então sentiu ódio em seu coração, e ainda que sua vida o deixasse lentamente pelos ferimentos em seu corpo, ele jurou que se vingaria de cada um dos seus senhores, e reinaria acima deles, não sem antes pisotear suas cabeças, para que não se erguessem um palmo acima do chão; e seu reinado não reconheceria fronteiras nem limites. A noite percebeu portanto que dentro da alma de um homem pode reinar mais violência do que nas garras de qualquer monstro, e comovida pelas suas lágrimas que desciam quentes e ardidas, o proclamou o Rei Demônio, o cavaleiro da noite, cuja alma seria eterna mas jamais encontraria qualquer descanso.
O cavaleiro fechou os olhos, e suspirou pela última vez como homem; quando os abriu novamente, era puro Mal. E quando seus inimigos chegaram, certeiros da vitória e do triunfo, foram trucidados um por um, por uma força que desconheciam tanto num ser humano como em qualquer ser que exista na terra. E seus cavalos foram amassados ao meio, e os crânios foram separados do corpo; e suas carnes queimaram até virar pó e seu sangue banhou os rios estagnados da montanha. E para o mais fraco dos inimigos, o que nunca teria qualquer chance, o que pediu clemência e piedade, o Rei Demônio ergueu a lâmina sobre sua face e disse; pouparei-te a alma mas não a vida. Tu serás meu general, morto ainda que vivo, e caminhará comigo na noite que seguirá o mundo, comandando um exército de cem milhões.
E o inimigo respondeu: mas sob a mão de nenhum general jamais esteve o controle de tantos homens! Ao sul, dizem de um samurai que possui dez milhões de homens a sua disposição; ao leste, falam de um pirata cuja frota comporta vinte e cinco milhões de homens. E o que dizer das famílias ao norte, cujo ouro facilmente renderia cinquenta milhões de homens!
Ao que o Rei Demônio lhe disse, entenda bem, meu general; ao seu lado caminharão cem milhões. Mas nenhum desses será homem, mulher, ou ser humano de qualquer maneira.
Nesse momento o inimigo percebeu que estava diante do rei do mal. E que de seus lábios exalava uma profecia que traria morte para o mundo, abençoada apenas pela noite.
O Rei Demônio fincou sua lâmina na garganta do inimigo, que desfaleceu na hora; mas no dia seguinte se levantou como de um sono profundo. E caminhou pelo orvalho da montanha, que agora caía escuro no chão. E a névoa era como sombra, interrompendo o olhar; mas o inimigo soube que seus olhos eram vermelhos e assim poderia ver mais longe e mais rápido. E chegou até o cume da Montanha da Morte, lugar cuja noite é a mais longa no mundo inteiro, e viu o trono do Rei Demônio engolido pelas chamas. E não havia palácio, pois tudo era ruína; não havia riquezas pois tudo era pedra e cascalho. E O Rei lhe disse, você vê, meu general, que nada poderão tirar do meu reinado. Não poderão me destruir, pois já me encontro morto; não poderão arruinar meus palácios, pois estou em todos os lugares e não em um só; não poderão nunca roubar o que tenho de mim pois nada é realmente meu. Eu sou o que tirarei dos outros, nunca o que tirarão de mim.
E o general percebeu que desconhecia do que era capaz aquele que verdadeiramente já não possui nada, nem mesmo sua própria vida.
O Rei Demônio assumiu a forma de uma raposa-da-montanha e desceu o desfiladeiro. Chegou na vila da lagoa, e proclamou: eu sou o Rei Demônio e comigo trago a noite eterna. Minhas fronteiras não conhecem fim, e meu exército é o de cem milhões. Eu busco vingança. Aqueles que estão comigo, rendam-se e subam o desfiladeiro seguindo meus passos. Os que se recusarem, sua alma repousará fria na morte.
Os aldeões riram das palavras da raposa, e nela atiraram pedras, dizendo que a caçariam mais tarde para o jantar. E o Rei Demônio recuou. Quando era jantar e os aldeões saíram para caçar na montanha, não encontraram alimento por horas e voltaram perdidos para casa, incertos do caminho a seguir. E quando finalmente chegaram, encontraram a vila soterrada por neve e rochas que haviam se desprendido da montanha. E embaixo delas estavam soterrados seus filhos, suas esposas, suas casas, e suas vidas.
A raposa, sentada sob um bloco de granito, lhes disse, eis as pedras que vos atiraram em mim. As considerei perdidas, e tratei de devolvê-las para vós.
Os aldeões caíram em desespero, e essa foi a primeira maldade do Rei Demônio. Quais se seguirão, pensou o general, assistindo tudo do cume da montanha, e soube-se que tudo que estava destinado de fato aconteceria. Mas, ainda assim, toda conquista o surpreenderia mais do que a anterior.
E surpreendeu-se mais ainda quando alguns dos caçadores foram subindo o cume, sob sua própria vontade, seguindo os passos da raposa, que os vinha guiando na frente. E pensou ainda, é sob o reinado do Rei Demônio que conhecerei mais sobre o coração das pessoas do que durante qualquer outra era.