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Senhor Hiena e Senhor Sagui

  • 30 de Março de 2018

Estivesse eu sob a companhia de um dos meus companheiros de esquadra, ou de qualquer homem do batalhão que fosse, pensei bem, um compatriota que o valha, homem ou mulher, ou pensando ainda mais, qualquer outro ser humano que caminha sobre essa terra, a cabeça desse hiena estaria esburacada e os miolos todos pelo chão. Mas estávamos só eu e ele, sem nenhuma viva alma ao alcance dos olhos, e somente nosso Senhor vigiaria os eventos que se desenrolavam naquela praia deserta sob sol escaldante.

Pensar talvez seja meu fraco, pensei. Pensar nisso fez com que eu hesitasse, e com a hesitação o hiena pode reagir, e se reagisse bem me desarmaria com um golpe preciso e agora eu estaria sob o lado errado da arma, e o jogo viraria numa fração de segundo. Mas o hiena reagiu mal, e ter um gatilho tão próximo assim da cachola fez com que rapidamente processasse como seria estar morto e conhecer o Pai, se é que os hienas vão para o mesmo céu que nós e são tão irmãos quanto. Este hiena, filho ou não de Deus, começou a chorar como uma criança, incapaz de conter os soluços e a tremedeira; tremia tão forte que minha pistola tremia junto e junto tremia minha mão, como num circuito elétrico.

Os olhos apertados para que negasse o que estava acontecendo, o que aconteceria a seguir, esse hiena levantou as mãos para que morresse desarmado e de olhos fechados. Já vi muitos mortos de olhos abertos, o que sempre me desconfortou bastante pois daí vem o pensamento de que talvez a qualquer momento pisquem ou direcionem o olhar para mim. Vivos não vivos, ou mortos que precisam vigiar a guerra eternamente ao invés de descansar no céu, incapazes de tomar partido de qualquer maneira. Pensar é com certeza meu fraco.

O hiena começou a sussurrar uma prece, e me dei conta de que hienas não falam nossa língua. Muito curioso para saber suas últimas palavras, eu o perguntei se ele sabia falar o bom português, visto que muito me aborrecia escutá-lo mas não decodificá-lo, e que o hiena falasse sozinho ao invés de falar comigo quando erámos as únicas pessoas em pé numa distância de várias milhas. Ele nada respondeu, e continuou a sussurrar cada vez mais rápido; redobrei a atenção para tentar decifrar seu idioma mas notei o quão sem sentido meu empreendimento era. Removi a pistola da sua orelha e olhei em volta.

O fuinha percebeu e arregalou os olhos. Se apercebeu vivo novamente, jogou-se no chão, como se eu tivesse dado a chance que ele precisava para argumentar comigo e assim livrar-se da morte; a mão esquerda levantada e a direita ao encontro de um diário nos bolsos do uniforme sujo, o abriu e mostrou uma fotografia dobrada ao meio na primeira página. Apontando, disse nervoso qualquer coisa sobre os membros da foto, em meio a tosse e suspiro, e eu perguntei, mulher? encantadora! e esse, seu filho? e essa sua filha? belo casal, aí está um homem de sorte. era aniversário de alguém? vejo um bolo em cima da mesa, era aniversário? O fuinha fez como quem não entendeu, e eu repeti, dando conta que nunca chegaríamos a lugar nenhum nessa discussão. Disse pra que esquecesse, mas meu indicador apontava para o bolo e ele entendeu. Apontou então o seu indicador de hiena para a menina, que num olhar mais apurado estava no meio da foto e mais próxima do bolo, era apenas natural que fosse aniversariante e isso a foto me dizia muito bem, tivesse prestado mais atenção.

Hiena largou sua bolsa num salto e se desfez de pistola, coldre, bolsa e chapéu, numa sequência do ato de desarme. Começou a falar desenfreadamente seu idioma incompreensível, ainda mais alto do que antes, e eu falei que chega, está bem, e fiz sinal para que se calasse. Tentei entender porque não o matei quando tive a chance e o que vai ser de nós agora que optei por não matá-lo. Agora ele não calava a boca, e eu tentei me distrair de alguma forma. Puxei sua mochila e perguntei, olhando nos seus olhos, o que você é, fuinha, o que faz por aqui, e ele percebeu. Amedontrou-se como se eu fosse o policial e ele um bandido pego no flagra, e foi bem o que aconteceu, pois em sua bolsa encontrei minas terrestres daquelas que explodem sob o simples pisar e lançam seu corpo em mil pedaços por aí.

Te peguei, seu safado, eu disse ao hiena, você arma essas perigosinhas por aí e se esquece delas, com a esperança de mais tarde se livrar de um de nós e nem ficar sabendo disso. Escute bem, eu e meu companheiros nos lançamos até aqui de paraquedas, e a única razão pela qual não estou bem longe daqui junto a eles é porque não entendi em qual momento se abria o equipamento. Abri cedo demais, suponho, e fui parar na costa bem perto do mar; na caminhada até onde seria o pouso eu bem que poderia pisar numa dessas demônias enterradas na areia e bum! (no bum, o hiena levou um pequeno susto e engoliu em seco) aqui jaz um ex-mecânico de carro que acabou muito, mas muito, muito longe de casa. é o que você quer, hiena? porque é o que aconteceria.

O fuinha apontou para o dispositivo e uma outra vez para o costa, como se para dizer que ali haviam mais delas, provavelmente plantadas por ele como sementes do mal, e se pôs lentamente de pé para que fossémos lá desarmar cada uma das malditas. Inocente o senhor fuinha, porque que brincadeira maligna seria se chegando lá eu apenas pedisse para que ele apenas caminhasse sobre a bomba e assim fosse exterminado sem que eu precisasse gastar uma só bala. Tal inclinação para a maldade me deu calafrios, e eu me confortei no fato de que nunca seria capaz de fazer tal maldade. Optei por não divulgar meu plano ainda que o fuinha fosse incapaz de entender patavinas do português, e fiquei aliviado ao ter uma razão para não tê-lo matado. Mais tarde eu poderia reportar o fato como um grande ato de heróismo: quase o matei antes de perceber que ele poderia servir aos meus propósitos, estes de limpar a praia da areia da morte. Tudo muito bem calculado.

Fomos caminhando pela costa, o hiena cada vez menos apreensivo e temeroso, e entendendo que eu não planejava fazer-lhe nenhum mal. Eu nunca havia estado tão perto de um deles, e agora me vinha a cabeça que não erámos tão diferentes um do outro assim. Ponha um terno e gravata nesse aí e ele de nada difere de um respeitável cavalheiro, que sai de um belo carro para pedir um belo polimento. Os fuinhas tem mulher e filhos, e suas filhas celebram festa de aniversário. Me pergunto se convidam também outras fuinhas filhotes e saem todos para o cinema da fuinhalândia, em fuinhópoles.

O sol é escaldante e a areia é fofa. O vento trás o cheiro do mar. Outros tempos, e eu armaria uma toalha na praia e tomaria dois banhos.

O hiena se virou para me dizer qualquer coisa. Eu disse que não entendi, ele se virou para dizer outra coisa independente disso. Me chateia que ele fale sozinho e eu decido falar sozinho também. Falo, sr. hiena, me diga onde se encontra seu batalhão. onde estão seus homens? diga-me para que eu ordene um ataque aéreo que varra os hienas da terra e assim eu seja condecorado heroi!

Comecei a rir diante desse pensamento, e o sr. hiena se vira para mim e começa rir também. Sua risada é sincera e eu percebo que ele está rindo da minha risada. Eu rio engraçado, já constaram meu companheiros. Parei de rir diante do nervoso.

Paramos. Observei as folhas de bananeira que comicamente cobriam a bomba no chão. Para nós que sabíamos que ali residia a morte, a escolha pelas folhas e o posicionamento delas era até ingênua. Mas para quem desconhecia sua intenção era letal. Eu mesmo poderia ter pisado nessas folhas, totalmente alheio para o perigo. Nossa relação é pautada na incompreensão, eu disse ao hiena.

Ele cuidadosamente desativava e removia a bomba. Sentei-me. Ninguém em volta, nada para fazer. Silêncio da fala, ocupada pelo zunido do vento forte nos ouvidos. Sr, hiena, eu costumava consertar carros. eu era bom nisso. quando a guerra começou, bem, eu achei que fosse continuar consertando carros. acontece que aqueles no comando acharam por bem colocar uma pistola na minha mão ao invés da chave inglesa e me lançar pelo ar ao invés de me deixarem quieto na oficina. você tinha um emprego, sr. hiena? antes de tudo isso.

O sr. hiena olhou com atenção. Eu lhe disse, emprego. trabalho, dinheiro. Eu puxei a carteira da bolsa, e tirei algumas notas; apontei elas para mim. Tive vontade de jogá-las na areia e vê-las voando sob o vento, visto que naquela situação não serviriam de nada; no entanto as pus de volta na carteira. De alguma forma o sr hiena entendeu meu questionamento e me entregou o diário, o mesmo da foto: sob as cartas, mapas e intruções estavam sempre desenhos magníficos de cidades, vilas, quartos, flores e animais. O sr. hiena era um desenhista, e me ocorreu que talvez tenha sido um pintor, e um dos bons. Difícil acreditar que um homem tão miserável, que a pouco implorava por sua vida, possuia tamanho tato artístico.

Eu apontei para a carteira, para confirmar que este era seu ganha-pão; o sr. hiena semicerrou os olhos como se disesse que sim, porém que não: eu pinto, mas recebo pouco ou nada por isso; sendo assim isto dificilmente poderia ser considerado um ganha-pão. Apesar disso, era o que ele fazia.

Por isso acabou aqui, sr. hiena? porque tem mulher e filhos e plantar bombas paga melhor do que pintar quadros? que mundo é este, em que vale mais derramar sangue alheio do que celebrar a beleza do nosso mundo. Belas palavras, e me ocorreu que se os hienas possuem sensibilidade artística talvez possuam literatura.

Eu nunca fui a uma exposição, sr. hiena, mas não deixo de admirar os desenhos nos jornais as vezes. sabe lá, eu gostava de estudar as letras. mas a necessidade tornou-me um mecânico, e saí muito cedo da escola. precisava pôr comida na mesa. você tem fome, sr. hiena? tome, vamos dividir um chocolate. aqui. eu dizia, croc, que acho que fiz o que tinha que fazer. mas se pudesse ainda estudaria as letras, croc. você gosta de desenhar, sr hiena? mas de que serve a pintura agora, em tempos de guerra? ou de que serve a pintura, em qualquer momento…

Fuinha encontrou um galho e começou a rabiscar a areia, rápido e preciso. Ocorreu-me que sr. hiena era um homem feliz. Apesar dos pesares.

Estivessemos em outra época, nos conheceríamos pelos jornais e não sob contrato de matar um ao outro. A insensibilidade da guerra.

Inclinei-me para ver o que desenhava. O desenho dizia: “sr. sagui, obrigado por ter poupado minha vida. sou eternamente grato. arte não é muito, mas é tudo que tenho; os tempos que vivemos são difíceis mas isso não significa que devam ser desanimadores. estamos vivos e isso é muito precioso, apesar de vez ou outra não nos darmos conta. ademais, o menino da foto é o namorado da minha filha e não meu filho. ele é lesado!!!!!!!!”