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E-mail para Sylvia Plath

  • 3 de Fevereiro de 2019

Eu tenho uma confissão pra fazer, eu estava lendo sobre a Sylvia Plath no jornal, um artigo na coluna de artes, eu nunca li nada da Sylvia Plath depois dos 16 anos. Li um livro dela que não sei mais o nome. Mas eu sei o que acontece se você me perguntar. Eu li sobre a Sylvia Plath, e o colunista me disse que ela escrevia como numa confissão. Que ela contava a história dela, sei lá, da vida dela, e publicava em livros pra todo mundo ver. Eu tremi toda pensando nisso. Essa ideia me assustou tanto, a de escrever assim sobre você pra todo mundo ver, me sentiria exposta, fragilizada, eu me considero uma mulher tão reservada e me orgulho tanto disso, estou aqui agora escrevendo uma confissão.

Senti como Sylvia Plath. O que Sylvia Plath acharia da minha confissão? Gostaria que ela falasse comigo, a Sylvia Plath da coluna de jornal. Se ela estivesse viva eu entraria no twitter dela, veria se ela tem um site com e-mail, eu mandaria um e-mail pra Sylvia Plath com a minha confissão. Não tem como, eu li que a Sylvia Plath bateu as botas. Se matou. Essa ideia me desconfortou muito menos do que me mostrar pra todo mundo, e eu me enojei comigo mesma.

Sylvia Plath, meu carro estancou no meio da avenida, não pega mais, não importa o que eu faça, eu sei bem o que fazer nessa situação, me pagam pra resolver problemas. Eu sou muito bem paga, eu tenho muito dinheiro guardado. Minha mãe faliu, Sylvia, minha mãe faliu quando eu tinha 16 anos, trabalhei por muito tempo de caixa de supermercado pra pagar a moça que trabalhava lá em casa. Minha mãe faliu mas não quis voltar a trabalhar depois de ser demitida. Minha mãe faliu e passamos fome. Minha mãe faliu e casou de novo pra eu não ter mais que trabalhar como caixa de supermercado.

Sylvia de analista. Sylvia Plath escutando meu confessionário.

Sylvia, eu nunca fui pra uma analista, minha mãe nunca deixaria, achava coisa de doente mental, achava que eu iria pra um asilo, disse que só serviria pra me deixar mais doente. Estou pensando em ir agora, depois de velha, pra conversar sobre quando eu era jovem. Ha! Eu gostaria de saber o que minha mãe acharia disso. Sylvia, estou falando de mim pra você. Sabe o quanto é difícil pra mim falar sobre mim mesma? Sabe o quanto é difícil falar sobre a minha mãe? Vai ser impossível eu falar com uma analista. Eu vou ficar falando as fofocas da vizinha, rapariga, cada dia fica entrando homem, mulher na casa dela, sabe-se lá o que fazem, dão bom dia pra mim no elevador e nunca mais voltam. Nunca dou bom dia pra mesma pessoa. É difícil pra mim.

Sylvia, minha filha tem 13 anos, eu encontrei uma camisinha usada no lixo do banheiro dela. Não fui eu que encontrei, foi a Leila, a mulher que trabalha lá em casa, disse que foi botar o lixo pra fora e encontrou. Eu fiquei puta. Eu fiquei muito puta, queria expulsar a Leila lá de casa, dizer que isso tem nada a ver com ela, coisa de mãe e filha, fiquei puta de não ser eu que descobriu. Falei pra ela parar de mexer nas coisas da minha filha, percebi o quão estúpida foi essa colocação e pedi desculpas. Leila percebeu e ficou na dela. É que ela falou baixinho, em tom de fofoca. Não é fofoca, uma coisa dessas. É minha filha.

Sylvia, eu queria ligar pro Wally, dizer Wally, minha filha transa. Wally, 13 anos, Wally. Não sei quem foi. Não sei o que fazer. Com quem terá sido, Wally. Como será que foi. É muito cedo? Eu não sei. Estou tremendo.

Eu digo pra mim mesma que essas coisas não me afetam, e vou trabalhar no mesmo dia e esqueço tudo, eu amo trabalhar, Wally, eu trabalho e esqueço tudo. Essa promoção é tudo que eu precisava na minha vida. Eu ganho muito e não penso nada. Eu posso pagar a viagem da Lívia, Wally. Pra qualquer canto da terra. Ela me chegou da escola, mãe, mãe, vamos pra Disney, quero fazer logo 15 anos e ir pra Disney na viagem da escola. Eu falei que ela não ia, o que tem pra fazer na Disney? Parque de diversões caro. Mas eu posso, Wally, eu posso mandar a Lívia vinte vezes pra Disney, indo e voltando. Eu tenho dinheiro de sobra agora que não tenho que pagar o tratamento da mamãe, nunca percebi isso. Tô achando que vou deixar tudo pra Lívia. Tenho medo dela usar tudo em camisinha. Tenho tanto medo. Será que ela vai transar na Disney? Com quem, meu Deus. Com o Mickey, minha filha vai pra Disney transar com o Mickey, o Pluto, o Pateta, o pato lá que esqueci o nome.

Sylvia, eu queria ligar pro Wally chorando pedindo pra ele voltar pra mim. Eu sei lá onde ele tá. Eu sei lá o número novo dele. Eu não ia dizer nada da Lívia. Eu só ia perguntar como estão as coisas, se ele tá bem, como tá a Elizeth. Essa é minha forma de dizer que sinto a falta dele. Eu não sei se quero o Wally de volta na minha vida. Eu só queria dizer que queria. Se ele voltasse mesmo, acho que eu mandava ele embora.

Algumas notícias: Wally, sua filha já tem 13 anos, transou. Não sei se foi a primeira vez ontem. Quero que seja mentira da Leila, quero que a Leila esteja transando no banheiro da Lívia, enquanto a menina está na escola, e botou a culpa nela. Quero que seja isso. Essas coisas doem tanto.

Wally, não temos mais 26 anos. Wally, minha mãe morreu. Finalmente. Achei que gostaria de saber. 13 anos depois, acho que finalmente posso procurar uma terapeuta.

Wally e eu temos 26 anos. É meu primeiro namorado, minha mãe não entende como alguém pode querer ter algo comigo, logo esse homem alto e charmoso que se ela pudesse era dela. Desculpa, mãe, ele é todo meu. Estamos no natal da família Santos, no apartamento alugado da tia Zefa. As luzes são tão iluminadas, o cheiro de lasanha no forno é forte. Tio Paranaíba e Tio Lourinho gritam após umas doses. Falam de futebol e de crime, não sei quantos baleados não sei onde. Mas falam esbravejando com um sorriso no rosto, de vez em quando encostando na árvore de natal que por um palmo não cai com tudo. As crianças deles correm uma atrás das outras pela casa rindo alto e fininho segurando um presente meio aberto, meio fechado. Tia Zefa chega com o isopor fazendo muita força, Wally corre pra ajudá-la. Tia Zefa pergunta se minha mãe vai poder vir, se já está no caminho. Tia Zefa, Wally que me trouxe. Tia Zefa, tô trabalhando na empresa do Wally, é o natal mais feliz da minha vida. Eu entrei por seleção, não foi ele que botou lá dentro, não importa o que vocês achem. Eu tenho 26 anos, vou casar com o homem mais bonito do mundo, estou trabalhando finalmente. As coisas vão bem, Tia Zefa, as coisas vão bem.

A árvore de natal cai com tudo —