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O Inverno da Alma

  • Escrito em 2019

Há muito tempo atrás havia um rei conhecido por sua alcunha de Rei Arquiteto, o senhor dos palácios. Sobre esse nobre sabe-se apenas que um dia foi um grande governante, de posse de várias terras e muitas riquezas, de descendência bastante tradicional. Esse rei morava num enorme palácio, construído e projetado por ele mesmo. Conta-se que desenhou desde as criptas inferiores do castelo até a janela da última torre, que escolheu a dedo o gesso que utilizaria em suas salas, que carregou a madeira que viraria seus portões ao lado dos seus homens, e que fundiu ele mesmo o ouro que se tornaria seu trono.


O palácio estava quase pronto.


Mas algo aconteceu no curso da História, à muito perdido nos pergaminhos de textos antigos, que fez com que o Rei ficasse completamente louco. Ao invés de podar as últimas rosas do seu jardim, ou de polir as últimas grades da janela, ele se trancou no quarto, se recusando a comer ou a beber. Ao invés de desenhar sua estrebaria ou de alimentar os cães, ele dormia por dias, não deixando as cobertas mesmo com tanto trabalho a ser feito e tanta vida lá fora.


Seu povo, muito compadecido da situação, se juntou para tentar alegrar o rei. Os melhores bobos-da-corte foram chamados, dançarinos e músicos de todo o mundo vieram ao seu auxílio. Cozinheiros lhe prepararam os mais ricos pratos e iguarias.


E ainda assim. o rei se recusava a reagir.


Uma noite, o rei saiu dos seus aposentos, foi até a sala de armas, puxou uma de suas refinadas adagas, lembrança dos tempos de guerreiro, e a fincou fundo no peito. Sua esposa, a rainha, o encontrou no chão, coberto de sangue, segurando firme a adaga.


Os curandeiros vieram rapidamente ao seu encalço e salvaram-lhe a vida, mas o rei ficou gravemente ferido e sua esposa caiu enferma devido ao choque da visão que teve. Com os dois governantes ausentes, o povo temia ser lançado ao caos, e a desesperança assolou o reino. Esse evento ficou então conhecido como o Inverno da Alma.


E a ausência do rei trouxe fome. A ausência do rei trouxe peste. E a ausência do rei trouxe desunião no coração das pessoas.


E as notícias viajaram rápido. De que o reino do Rei Arquiteto se tornaria incapaz de se defender, que em breve cairia em desolação, e a desgovernança traria confusão, fome e desordem ao reino. Reinos vizinhos levantaram os olhos em cobiça. Antes viam o Rei como um aliado; agora o viam como uma oportunidade.


Declaram-lhe guerra. Lançaram-lhe exércitos inteiros, de todas as partes do mundo. Presa fácil, a que não resistirá ao bote.


O povo pediu para ir à guerra. Que o exército o preparasse, que lhe dessem armas e cavalos, que a ameaça não era assim tão perigosa que não pudesse ser impedida, que não queriam ceder sua terras assim tão facilmente. Mas o Rei nada lhes respondeu. O povo o odiou por isso.


Alguns lutaram como possível. Usaram madeira, cascalho, rochas. Mas o ferro lhes irrompeu a carne e a resistência, O fogo destruiu suas casas, e havia pouca água para combater. Muitos fugiram, outros pediram piedade.


O Rei não mandou nenhum exército. Não comandou um só homem. Observava da janela inacabada do seu quarto as formações adentrando seu palácio. Na cama, sua mulher deitada sofrendo de febre. Os olhos baixos, a pele vermelha, o corpo fraco e mole. Ela sorriu para ele. Perguntou o que lhe faltava na vida. Disse que ele podia pedir qualquer coisa, que ela havia de encontrar para ele. Ela se levantaria da cama, montaria num cavalo, e rumaria o mundo à procura do que quer que seja que o Rei precisava para que as coisas voltassem a ser como antes. Ele só tinha que lhe dizer o que era.


O Rei não lhe respondeu nada.


A rainha pede perdão por não ter sido capaz. E pede ainda mais perdão se a causa da angústia do Rei for ela.


Os exércitos inimigos chegam ao trono, e conquistam o reino sem maiores dificuldades. Capturam a rainha prisioneira, mas o Rei Arquiteto não se encontra em lugar algum.


Incapazes de chegarem a um acordo, eles brigam entre si pelo trono e pelo magnífico palácio. Combatem uns aos outros usando fogo e canhões, dois elementos que como se sabe danificam a estrutura dos castelos, e a construção, inacabada como estava, é destruída torre por torre.


Da montanha, o Rei observa seu palácio tornar-se ruína. Seus jardins queimam, suas lagoas secam, e seu povo sofre.


~


Algum tempo depois, o Rei Arquiteto planeja construir seu castelo novamente, pilar por pilar. E na sua loucura, tenta construir um palácio feito de nuvens, ao invés de usar o gesso ou o mármore. No final do dia, ele se senta no seu trono de nuvem e cai estatelado no chão.


O Rei Arquiteto usa sonhos para construir seu palácio. Mas quando ele acorda, seu teto sonhado não está mais lá e ele se molha com a água da chuva.


O Rei Arquiteto usa areia para defender suas torres, mas ao primeiro vento seu castelo fica só na lembrança.


Por um momento de rara sensatez, o Rei se desespera. Ele se pergunta se um dia as coisas voltarão a ser como antes. Se um dia voltará a sentar num trono, se abraçará sua esposa, se terminará seu palácio que um dia foi um dos mais magníficos que o mundo já teve.


O Rei Arquiteto se pergunta o que lhe falta para ser feliz.

Mas é incapaz de chegar em nenhuma resposta.


O dia seguinte chega, e o Rei tenta construir seu palácio com lágrimas. No dia seguinte, ele usa resiliência. E no dia seguinte, ele usa sua adaga.


O Rei Arquiteto jura utilizar cada material que ele conhece até que seu castelo dure mais um dia. Um dia, ele promete, há de sentar num trono novamente.