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Atire se Precisar

  • Escrito em 2019

Aos 12 desenho uma arma num papel rasgado de caderno escrito gostaria de morrer. minha professora pega o papel da minha mesa,

não a percebi chegar. ela diz que só vou sair da escola quando meus pais vierem me buscar. fico pulando em poças de lama, estava chovendo. meu pai veio me pegar. não troca palavras comigo dentro do carro, como sempre. quando chega em casa, ele me entrega uma Glock .40 nas minhas mãos, e diz, guarde na terceira gaveta do seu quarto. isso é pra quando você pensar nessas coisas de novo.


Aos 18 a gaveta abre pela primeira vez. uma menina que eu ficava encontra a Glock .40 no dia seguinte depois da segunda vez que dormimos juntos. eu a encontro no balanço e pergunto o que ela estava procurando nas minhas coisas, depois de chegar na escola e notar que todo mundo no colégio agora sabe que na minha terceira gaveta existe uma Glock .40. ela diz que se eu ameaçar ela de novo, vai contar que eu fiquei com a amiga dela enquanto ela namorava pra todo mundo. eu digo que não sabia que ela namorava. ela diz que ele vai me matar, e é bom que eu traga a Glock .40. dois dias depois o namorado dela veio falar comigo. disse que ia me quebrar na porrada, e que não havia arminha que o salvasse. eu disse que não sabia. ele disse pra eu me cuidar. todo mundo começa a se distanciar de mim. antes eu achava que eram minhas espinhas. agora acho que tem medo de que eu faça um massacre.


Aos 24 meu pai se vai. eu e minha mãe limpamos a casa de seus vestígios e colocamos tudo que remete à ele em uma caixa vermelha de natal. abro a gaveta, passo um tempo me decidindo qual será o destino da Glock .40. resolvo deixar na gaveta. apesar de tudo, respeitei muito o meu pai.


Aos 30 vou me mudar de casa. coloco a Glock .40 na terceira gaveta do meu novo apartamento, que aluguei com a minha namorada. ela diz que não, você não vai levar essa coisa pra nossa casa, não tem registro, não tem nada, eu que não vou dormir com isso aí do lado. eu digo, foi um presente do meu pai. um dos poucos. você não me deixa fazer nada, quer controlar tudo que eu faço. ela deixa estar. sei que agora está calada mas que vai reclamar sobre isso depois. aproveito o momento de silêncio, sorvendo enquanto dura.


Aos 36 meu filho pega a Glock .40 e atira certeiro na parede. dá polícia. pago para eles não levarem, não tinha registro. digo para ele não contar para a mãe dele.


Aos 40 visito minha mãe no natal e descubro que ela jogou a caixa vermelha fora. só o que restou do meu pai foi o mesmo rosto quando me olho no espelho, e a Glock .40 da minha gaveta. pensando na gaveta, digo pela primeira vez para minha mãe que a amo, com resto de chester enrolado nos dentes. é natal mas faz calor.


Aos 44 me meto numa discussão de trânsito e o homem da frente saca uma arma. levo 4 tiros, sou internado. perco muito sangue. penso em meu pai. penso em armas de fogo. não costumo pensar nesses dois assuntos. mas como o texto encurta os espaços de tempo, parece que é tudo que permeia meus pensamentos. mas hoje de manhã pensei no quanto sinto orgulho do meu filho, que está jogando basquete na liga universitária. não quero que ele saiba ainda, vai prejudicar o resultado do jogo de hoje. pensei nessas três coisas, meu pai, armas de fogo, e no meu filho. se eu tivesse achado a Glock .40, teria disparado na minha testa. mas foi meu pai que me deu e não quis gastar o pente.


Aos 48 escrevo um memorial, sugestão do meu advogado. não deixo a Glock .40 pro meu filho. abro a gaveta, lembrando de sua existência. passado tanto tempo, não sei o que fazer com essa coisa. devia ter sido menos cabeça dura e feito o que minha ex-esposa falou. agora não encontro forças pra jogá-la fora. nem sei como jogá-la fora. eu me pergunto se vou voltar a ver minha mãe. se um dia vou ver meu pai. e se meu filho vai me reencontrar quando eu me for. deve haver algo mais. deve haver algo depois. nunca me peguei pensando nessas coisas, agora eu penso. banhei meu filho de presentes. fui bom para ele. não pude ser o melhor pai do mundo. mas fiz o que pude. desculpe o sentimentalismo. depois de certa idade, voltar atrás e se lembrar acontece mais do que pensar à frente.