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Disputar a Universidade - ou explodir tudo, mesmo

  • 12 de Agosto, 2020

Em 11 de março do ano de 2020, a Organização Mundial da Saúde reconheceu o contágio da SARS-CoV-2 como uma Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional, que portanto exige "uma resposta internacional coordenada" para o seu enfrentamento. Dentre as recomendações do Ministério da Saúde do Brasil para conter a pandemia, está o chamado "Distanciamento Social", "quando todos os setores da sociedade precisam permanecer na residência enquanto durar a decretação da medida pelos gestores locais."

Cinco dias depois, recebi um e-mail anunciando a suspensão das atividades da universidade onde estudo (UFC) por tempo indeterminado. 150 dias após esse decreto, e mais de 700 mil mortes depois, coloquei os pés para fora de casa não mais do que dez vezes.

Diante desse estado de nova organização social, cada um de nós teve de ser reordenar como possível. Minha medida de enfrentamento à situação de pandemia foi a de respeitar os órgãos de saúde competentes e de ficar mesmo dentro de casa - mais tarde, seria contra a lei circular em espaços públicos no meu estado caso a atividade praticada não fosse considerada "essencial". Esse momento único foi pensado por muitos; alguns viram no estado em que viviam um quê de distopia, de "ficção científica" - talvez até um prelúdio para o fim dos tempos.

Na primeira semana de abril de 2020, diante desse cenário e a impossibilidade de seguir com o meus planejados, decidi reestruturar minha vida. Guardei meus livros e estudos em arte e cinema e fui aprender a programar.

Rios e Córregos

Tudo correndo dentro do esperado, eu deveria iniciar meus processos de pesquisa para TCC, o Trabalho de Conclusão do Curso, e estar graduado em Cinema e Audiovisual pela UFC no fim de 2020. O que significa isso? O que representa o fim de uma graduação universitária, ainda mais em artes? Estariam esgotadas as oportunidades para aprender mais, repensar, talvez até reaprender? A academia pede por uma uniformidade, e por isso seus diversos cursos tem um tempo estipulado (e um tempo limite) para iniciar e acabar. Cinema não é exceção.

Mas de qualquer forma não me sentia (nem sinto ainda, apesar desse escrito e também outros serem uma espécie de treinamentos, ensaios) preparado não para pesquisar, mas sim sumarizar tantos interesses meus num único que é o supremo e por isso será o "escolhido" para ser tema de TCC.

Hoje entendo essas formalidades como simplesmente isso - formalidades. Lógico que é o meu ver e não pretendo impor ele à ninguém. Mas se pensarmos o que se faz, se pensa e se vive na universidade um processo de pesquisa, ou até mesmo a própria pesquisa, que sentido faz que essa multitude de conhecimentos, posicionamentos e vivências desemboquem em um só?

A minha proposta vai um pouco além - a pesquisa universitária também é uma pesquisa que bebe da vida, de antes e de fora da universidade. Conclusões que tiramos aos 8 anos de idade são passíveis de estar numa monografia. Porque não explorar esses conhecimentos da infância?

Muitos concordam que a educação básica é requisito para a educação superior (nomenclatura essa que já quer dizer alguma coisa - hierarquia, eu diria). Os próprios exames para entrada nas universidades públicas são de "revisões", "testes" para saber se o conteúdo básico foi suficientemente apreendido. Possuo colegas que reveem o que aprenderam nas aulas do ensino médio, para que possam dar continuidade em disciplinas de cálculo.

Ao meu ver, é apenas natural que a pesquisa acadêmica se utilize de conhecimentos (e pesquisas, ou processos de pesquisa) que provém de toda uma vida, desde o nascimento. Porque não se trabalhar não para resgatar, mas sim para legitimar essas miríade no ambiente universitário?

Afluentes e Influentes

A minha suposição é a de que a academia tem, assim como qualquer grupo estruturado de pessoas, seus códigos de representação e aquilo que olha com primor e aquilo que olha com desinteresse. Desenvolver pesquisas sozinho e estrutura-las de maneira compreensível não é para todo mundo, exige um nível de autonomia que as vezes não possuímos (ao nos ver sozinhos). E nisso volto o pensamento para a pandemia. Ciência é debate, exposição de múltiplas ideias; que importância tem as coisas que penso sozinho na minha cabeça, quando não tenho nada mais divertido para fazer?

Eu tive a sorte de me encontrar com aqueles e aquelas receptivos à esses pensamentos, e me senti confortável para compartilha-las. Isso poderia muito bem não ter acontecido, mas eis o destino. A pandemia, da mesma maneira, está longe do nosso alcance.

Tive a liberdade, portanto, de estruturar minhas leituras e experiências de forma que muitos observariam como dispersa, mas que para mim tem lugar não só especial como essencial. Existe um ditado que diz, "não tente abraçar o mundo com as pernas". Me permito tirar esse dizer de lugar para afirmar justamente o "abraçar o mundo" - eu jamais poderia me encaixar numa única lógica se o mundo inteiro ficasse de fora. Por isso meu problema de dizer, sou artista, sou designer, sou pesquisador, sou escritor, sou isso, sou aquilo. Não sou nada dessas coisas; como bem disse alguém que a internet não é capaz de me retornar,

Definir-se é limitar-se.

Existe um outro debate, ao qual também me interesso, que diz que na exclusividade reside o desenvolvimento; que ao dedicar-se em uma só área é possível se destacar nela. Faz apenas sentido, digamos que eu abandonasse tudo e me dedicasse apenas a ser um escritor, por exemplo. Em determinado tempo poderia ser capaz de escrever melhor, e teria mais livros, e seria conhecido por mais pessoas enquanto escritor. Isso me parece uma utopia? Na verdade, a alegria de ter me destacado empata no pânico de ter que deixar todo o resto de fora. E não ter abraçado o mundo.

Existem preços a se pagar, é claro. Sei fazer design, mas não um bom design. Sei escrever contos, mas não contos incríveis. Pode-se escapar disso? Acho que não. Pode-se fazer algo diferente com isso? Tenho certeza que sim.

Oceanos

O que tudo isso significa para o pesquisador em artes? Esse é mais outro problema, uma nova discussão: o que é pesquisar a arte, ou "em artes". Não é apenas uma formalidade que um filme possa também ser apresentado como TCC na UFC: não que ele seja "produto final", mas sim "uma pesquisa", ou fruto de uma pesquisa. Constata-se portanto a potência do filme e das imagens, que emanam um discurso que diz alguma coisa não tal como o texto escrito mas talvez além dele.

Não sei se me faço entender, não sou um grande iniciado na pesquisa em artes, justamente por essa formação múltipla. Cada teoria vai querer puxar o conhecimento para o seu próprio lado e reivindicar a autoridade para si mesmo. Sendo o artista essa existência que é de constante invenção e re-invenção do mundo e das coisas, (minha concepção também, que fique claro), acredito que para ele seja legítimo criar a própria maneira de pesquisar em artes e pesquisar sobre artes.

Algum tempo atrás minhas críticas a academia a observavam como um espaço concreto, estático, irredutível, fechado. Fui afastado desse pensamento pelo próprio professor universitário, que num ato de responsabilidade reivindica para si um espaço de ação e definição no ambiente acadêmico. Talvez tenhamos a mesma responsabilidade enquanto estudantes universitários - fazemos a universidade tanto quanto às regras que nos foram impostas.

E nesse movimento mudamos o código, programamos ao nosso bem entender. O jogo vira outro se as regras mudam.

Esse meu professor me introduziu à ideia de disputar a universidade. Esse é o caminho que agora eu trilho: tenho meus estranhamentos e logicamente mantenho minhas críticas. Mas agora fui apresentado à proposta de mudar as regras do jogo. E fazer pesquisa do meu jeito, e apreender conhecimento do meu jeito, e fazer arte ou design ou livros ou programação, o que quer que seja, do meu jeito.

Na realidade, ser um estrangeiro, isso é, não ser natural, ter acesso por outras vias, dá à criação o ar de novidade. Isso não foi tentado antes, porque é alheio, estranho ou vem de outro lugar.

Uma das diversões de apresentar o zine às pessoas é que muitas delas perguntam, o que é zine? O que é esse negócio, nunca ouvi falar. É como se eu abrisse suas cacholas para novas possibilidades - o que, acredito eu, seja a utopia para mim. Quebrar as regras do jogo, programar do jeito que se bem entender. E se tudo falhar, explodir um bomba e demolir as paredes!

megumin fofinha


Notas de rodapé

Durante a pandemia de 2020, fiquei em casa aprendendo a programar. Não fiz só isso, é claro, também escrevi um livrinho, li umas coisinhas. Mas para a pesquisa de TCC, propriamente, não estudei nada. O que nós dois sabemos ser uma grande lorota, toda vivência é estudo e pesquisa.

Mas escrevi essas palavras também na intenção de estruturar meus pensamentos sobre arte e pesquisa em artes na forma textual, e também como uma correspondência à todos a qual possa chegar esse escrito.

Esse texto foi escrito da ocasião de uma conversa com um amigo-professor, que como ele mesmo bem disse, só me empurra e não ensina nada. Nunca deixei de ler e pensar sobre arte, mas agora me sinto na responsabilidade de desembocar essa barulheira de pensamentos em algum lugar.

Minha intenção última é que eu possa incentivar outros artistas e pesquisadores a seguirem produzindo e pensando arte. Se esse texto não chegar à ninguém, serve de memória para mim.

Obrigado professor, e obrigado você por ter me lido até aqui. A gente se vê no futuro, se cuida!

Escrito por Levi S. Porto, em 12/08, para seu blog farofinhas.site