Videogames são utopias? (e a próxima revolução da imagem técnica)
Esse ensaio se debruça sobre questões levantadas pelo pensador Vilém Flusser acerca da utopia e do gênero de ficção científica para refletir sobre videogames e o futuro das tecnologias da imagem. Escrevo também inspirado pelo trabalho do meu amigo Nolcip, que intenciona avançar a tecnologia de Ray Tracing.
Videogames são utopias? Durantes essas semanas, tenho passado muito do meu tempo jogando um jogo chamado GTA V. No citado jogo, meu personagem, controlado por mim, pode caminhar, correr, pular, atirar com armas, pilotar vários veículos entre carros, motos, lanchas e aviões, interagir com pessoas na rua e muitas, muitas outras representações. Enquanto no jogo, tenho liberdades e habilidades que simplesmente não possuo na vida "real", isto é, fora do jogo. No videogame, eu posso matar, posso roubar, atropelar quem eu quiser, sem que hajam muitas consequências. O jogo não segue as regras da vida. Sendo assim, seriam videogames utopias?
A fruição
Existem estudos literários, fílmicos, teatrais, enfim, de toda a sorte que tratam do fenômeno da fruição do espectador (ou do leitor, ou do ouvinte, quem quer que seja). Para onde somos transportados quando lemos um livro e nos vemos sob a pele do personagem? Quando nos reunimos na fogueira, e nos contam uma história, somos transportados para debaixo da pele do heroi, e passamos por seus bons ou maus bocados, desventuras e crises. Abstraímos e somos esse outro alguém, saímos da nossa casca para habitar outra para que de lá seja extraído algo para si.
Isto é causa da narrativa, da arte, ou da linguagem? O que nos desprende de nós nesse momento? Talvez não seja tão absurdo propor que os videogames levam essa experiência até as últimas consequências. Gerado num momento que se convencionou por alguns pensadores de denominar "pós imagem", o jogo eletrônico bebe de tudo aquilo que veio antes - o cinema, o teatro de representações de papéis, o alfabeto, o jogo real de Ur, a mancala, a história na fogueira.
Não houveram muitos momentos sublimes na qual os jogos eletrônicos foram vistos como muito além de cultura de massa - razão pela qual em matéria de gênero existe um campo que o estuda (os chamados game studies ou ludologia), enquanto demasiados outros o renegam (as teorias da imagem, a teoria da arte). Acredito que possa se olhar para as várias experiências do humano contemporâneo sob as ideias desses vários pensadores. Se muitos já perceberam que a cultura de massa é parte integrante dessa experiência, então os videogames tem muito a dizer sobre o nosso tempo, quem somos e até quem podemos nos tornar.
Videogames são utopias?
Muitos entendem o jogo como um conjunto de regras, primordialmente ou simplesmente. Comparando-se o jogo eletrônico, à exemplo GTA V, às regras imposta pela convivência em sociedade, ou até às regras da própria vida, o que temos? Talvez uma utopia, no sentido da palavra em que somos 'verdadeiramente' livre para que se faça o que quiser - nem mesmo a regra da morte estão impostas, isto é, se eu morrer no jogo logo estarei de volta à vida (no jogo, e também na vida, espera-se) e poderei usufruir novamente da minha liberdade. GTA V permite que eu empunhe armas e atire em qualquer um; em seguida posso roubar um carro e dirigir até às montanhas.
Qual foi o processo histórico que nos desembocou enquanto civilização na criação de utopias digitais, onde as regras do próprio jogos são "podes matar"? O que aconteceu no processo da apreensão da imagem digital pela sociedade que disassociou o representado da representação?
Certas teorias elucidam que as imagens que nos atraem são justamente as imagens que queremos que se "realizem"; um sentimento de posse e de estar lá, que a fruição torne-se vivência. Não precisa ir muito longe: eu gostaria de poder andar por onde eu quiser e dirigir para onde for. No GTA V, isso tudo é possível. Na vida real, não.
Os limites impostos pela vida que os videogames transpões podem ser estudados para chegarmos não apenas à conclusões sobre em que ponto está a imagem nesse momento e que função ela cumpre na nossa cultura, mas também quais são os sonhos que sonhamos. Isto porque muitos deles são realizados no jogo, isso é, quando a abstração é o suficiente para enxergarmos nossos personagens como nós mesmos. E nisso difere o jogo eletrônico dos seus precedentes; o filme, por exemplo, ainda trabalha com uma barreira da terceira pessoa, onde um personagem é observado e os desejos que se realizam são os dele. A arte interativa transpõe essa barreira, nos dando controle direto da imagem por meio de botões (o que diz a nossa interação com as máquinas?). Essa interação é mínima, porém potente e por isso perigosa. Com um movimento do dedo, realizo uma ação completa, como entrar em um carro. É algo tão pequeno, mas ainda assim há um trabalho do corpo. E que, mais uma vez, supera a do cinema ou da literatura, que propõe que o público ou os leitores se utilizem apenas do movimento dos olhos; ocasionalmente que se vire uma página ou que se espreguiçe na poltrona.
Asas para voar
Em minha concepção, assim como a fotografia tomou o lugar da representação fiel da realidade no lugar da pintura na virada do século passado, haverá um século na qual a imagem computadorizada tomará o lugar da fotografia. Para ser sincero, me espanta que ainda estejamos relativamente longe desse momento; pode ser que eu tenha nascido muito cedo. Mas vejo que esse é o caminho que trilhamos; essa é a ficção científica que anuncio.
Devo admitir que as tecnologias que se encaminham nos nossos tempos, a dizer o Ray Tracing, não seguem de muito perto o caminho que aqui estipulo. Mas me utilizo da minha ingenuidade para imaginar caminhos possíveis que transpõem o momento de agora: em minha concepção, eu vejo um aparato tecnológico que se assemelha à câmera fotográfica, e de semelhante maneira captura e registra a luz. No entanto, o suporte utilizado não é o plano, e sim o tridimensional; sendo o registro dessa forma, pode-se replicar a imagem de um ambiente inteiro, em três dimensões, numa plataforma computadorizada.
Suponha que você está em sua casa. Utilizando a câmera fotográfica, uma imagem bidimensional é criada, e portanto há limites quanto à interação com ela. Nesse novo aparato, você pode registrar sua casa numa imagem?
ou nova coisa, da ordem do tridimensional. Assim sendo, você pode utilizando-se de um computador ou dispositivo computadorizado que seja, navegar pela sua casa, isto é, explorar a imagem criada em altura, largura e profundidade, como num videogame ou simulação de Autocad.
As possibilidades são várias. No início, a câmera fotográfica não poderia guardar a representação de nada muito além de uma vista da janela. Não muito tempo depois, e poderia-se registrar ruas ou vales inteiros. E mais um tantinho de tempo só, a câmera possibilitou o filme, a multiplicação das imagens que gera a ilusão do movimento (e que como sabemos, vai muito além disso). Se esse dispositivo utópico seguisse pelo mesmo caminho, enormes áreas podem ser transpostas para o computador - imagine poder cruzar um país inteiro, observar uma borboleta estática em diversos ângulos ou de repente ter a experiência de ser maior que uma montanha, caminhando entre os vales (assim como as fotografias possibilitam ser reproduzidas no tamanho que desejamos).
Vá ainda além nessa especulação e imagine que o dispositivo pode agora registrar momentos e assim também gerar "filmes 3D". Seguindo o exemplo da casa, todos os presentes e suas ações são registradas, e depois podemos andar pelo acontecido, observar o acontecido de diversas posições, enfim, "reviver" ou "re-estar" no acontecido. Me faço entender?
Ultrarealidades
Os videogames de hoje (e insisto com meu exemplo, GTA V) almeijam chegar perto dessa utopia. A lógica dos jogos eletrônicos de alto orçamento (e não somente; as simulações de arquitetura e certas maquinarias, e até os próprios filmes animados de alto orçamento) seguem uma lógica de ultra-realismo, fidedignidade máxima - ou ao menos até onde é possível o que oferece a fotografia e a computação. Nesse modelo de produção, a imagem fotográfica é transposta para o computador e recriada ou readaptada por artistas, geralmente da forma que melhor adequa ao projeto.
Camera Rig utilizado para fazer a digitalização dos atores em personagens do jogo eletrônico Metal Gear Solid V (Konami,2015)
Logicamente o processo não finda aí, e o que pensamos como "computação gráfica " é um conjunto de lógicas e tecnologias que envolvem algorítimos, vetorização, equações, processamento. Enquanto não se descobre a tecnologia por trás dessa maravilhosa câmera utópica, cálculos continuam sendo feitos em prol de um objetivo comum: recriar no computador e pelo computador uma nova realidade, uma nova possibilidade ainda mais próxima do real que a própria fotografia.
Com a realidade sendo perfeitamente reproduzida pela câmera, a pintura criou asas para voar e se tornar uma outra coisa que não a imagem do real. E novas perspectivas da arte surgiram desde então. Minha ambição é que um processo semelhante ocorra com os videogames. Potencializados pela ultrarealidade, talvez eles possam vir a se tornar uma nova coisa.
Artistas sempre existiram e sempre irão existir, enquando houver humanidade; a fotografia também se provou veículo de expressão artística. Nessa constatação elucido que não clamo pelo fim da experiência do videogame ultrarreal. Tenho certeza de que ele continuará existindo. Mas o que anseio é uma completa revolução da imagem computadorizada.
Imagino, nessa ficção científica, jogos onde posso andar pela minha própria casa. Jogos onde posso ser maior do que trens. Jogos onde posso reviver momentos de afeto, com pessoas que talvez não estejam mais aqui. Jogos onde as coisas tem gosto e cheiro estranho. E nessa proposição, espero que não seja tão utópico profetizar que, se a revolução passada foi a das imagens da câmera fotográfica, talvez a do futuro seja a dos videogames (ou ao menos sua lógica, enquanto mundos digitais que possibilitam cruzar livremente).
Espero não ter nascido cedo demais.
Notas de rodapé
Em um próximo texto, desejo novamente se debruçar sobre o pensamento de Flusser acerca da ficção científica para imaginar um futuro não pautado pela tecnologia. Através dos seus escritos, me veio a interessante observação de que as narrativas de ficções científicas as quais estou mais habituado pautam-se primariamente numa discussão de ordem tecnicista - isto é, "qual é o estado da tecnologia daqui a uns tempos?". Algumas proposições estipulam um mundo ainda mais pautado pelas "novas tecnologias"; nessas é comum que os humanos colonizem outros planetas, convivam com máquinas ou se tornem um com elas. Já outros predizem que o futuro é um cuja alta tecnologia existe apenas em ruína, e num eterno retorno, os humanos voltaram a um estado protoanárquico, e apenas pequenas comunidades subexistam enquanto a terra tornou-se um deserto inabitável.
Ambas as possibilidades, ao meu ver, e sua centralidade na tecnologia, dizem respeito à um momento na história na qual a ciência adentrou em nossas vidas de certa forma de que é impossível escapar; nossa relação com o mundo e os outros é agora pautada pela técnica. Soma-se isso ao fato de que essas tecnologias mudam muito rapidamente: se no nosso presente presenciamos essas mudanças, é apenas lógico que no futuro presenciaremos mais mudanças.
Obviamente existem muitos bons exemplos que narram um futuro próximo sem a necessidade de pautá-lo na nossa relação com as tecnologias, como exemplo o livro do autor japonês Koushun Takami 'Battle Royale'. Estes seguem uma tradição forte da ficção científica de, como diz Flusser, comentar o presente ao estipular o futuro, cujo enfoque na verdade centra-se nas próximas formas de organização social (pensa-se logo no Big Brother de Orwell, ou na divisão entre castas de Admirável Mundo Novo).
A narrativa apresentada nesse meu texto segue, confesso, o primeiro clichê - o de apresentar um futuro maravilhoso fruto da "evolução" da técnica. Me permito isso porque em meu quadro de referências não relembro muitos exemplos que li, vi ou joguei de ficções científicas utópicas, ou seja, uma na qual a tecnologia, ultimamente, resultou em consequências menos do que nefastas para a humanidade. Flusser também elucida que isso é fruto à uma crítica ao pensamento moderno, de que os mitos da missão civilizatória, se antes foi heroica, desembocou em absurdos como o nazismo e Auschwitz.
De fato, as narrativas pós-modernas são em geral bastante carentes de otimismo e "finais felizes". A maioria de nós tem ciência de que sua relação com a tecnologia não faz o bem, e nem, ultimamente, trará dias melhores.
Mas isso é pano para um próximo texto, um que tratará da distopia. Videogames já são comumente descartados (quando não surrados) pelos estudos da imagem; sendo assim, eles convenientemente estarão distantes dos meus pensamentos de distopia.
Em um último pensamento, sem mais querer me alongar, sabe-se também que toda utopia pode ser uma distopia, dependendo dos gostos pessoais de cada um e do tamanho do pé. A utopia que eu propus pode gerar o vício da imagem, e não é difícil imaginar aqueles que mergulhariam nesses paraísos artíficais para nunca mais voltar, esquecendo-se assim da própria vida; assim como temos hoje os que não tem outra vida a não ser jogar videogames ou assistir à filmes o dia inteiro.
Mas concluo também que a função da arte seja a de imaginar mundos melhores para que possamos ir rumo à eles - ainda que para isso seja preciso pintar nosso próprio mundo com cores feias para que percebamos que ainda há muito o que se colorir.
Se a minha arte ou meus escritos não caminharem rumo a um mundo melhor e com mais esperança, então eles não servirão para nada. Do contrário, eles significam tudo.
Muito obrigado pela sua atenção.
Esse ensaio é inspirado pela leitura do texto "As utopias de Flusser", de Márcio Seligmann-Silva, publicado no Flusser Studies 15. Agradeço também os emails-carta trocados com meu grande amigo Nolcip, que me elucidou sobre seu trabalho com Ray-tracing, viajou no tempo para o futuro, e trouxe suas imagens de lá.
**Escrito por Levi S. Porto, em 12/08, para seu blog farofinhas.site