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A Flauta Mágica

  • Escrito em 2019

Houve, há algum tempo atrás, uma desastrosa guerra que assolou um país distante. Haviam aqueles que eram feitos prisioneiros, levados para uma prisão distante, rodeada de neve por todos os lados, e forçados a trabalhar sem descanso para que a guerra continuasse. Havia muita gente e pouca comida, e rotineiro era que os guardas fuzilassem aqueles que não eram capazes de trabalhar duro, dia após dia, tal como os outros.

Dentre uma ala de prisioneiros havia um flautista que possuia mãos e braços frágeis, e portanto, não conseguia trabalhar tanto quanto os demais; seus companheiros de cela o olhavam com desdém e inveja por ele trabalhar menos e receber de ração o tanto quanto os outros.

Uma noite, incapazes de dormir pela dor do estômago vazio, os prisioneiros se juntaram em volta do flautista e a ele disseram, “observem todos, aqui está o mais inútil de todos nós, e enquanto trabalhamos com todas as nossas forças este homem se delicia com sua flauta e se põe a dormir; enquanto desfalecemos de cansaço esse homem come da nossa comida como se fosse um de nós. Eis um aproveitador barato, e eu proponho fazer com que ele engula sua flauta para que finalmente trabalhe de verdade tal qual os outros”.

O flautista então pediu para que não o fizessem mal, e em troca tocaria para eles. E lhes perguntou, “o que é aquilo a que desejam ouvir?” Ao que um dos prisioneiros respondeu, zombando, “toca o som de como as coisas eram antes de virmos parar nesse inferno!”

O flautista respondeu, de onde vens, meu amigo, e ele respondeu, da planície. É verdejado lá, faz sol e colheita sadia? Sim, faz.

Então o flautista tocou o som das planícies, e ouviu-se o som dos grilos, do cantar dos pássaros, do caminhar pela grama, do calmo riacho próximo na qual pode-se beber água, do sino da vaca leiteira de manhã cedo e da porteira de madeira se abrindo anunciando um novo dia.

E os prisioneiros, maravilhados, esqueceram-se por algum tempo que viviam rodeados pela morte e o perigo e lembraram-se como era em casa.

Na noite seguinte, sentaram-se novamente em volta do flautista e ele os perguntou, “o que é aquilo a que desejam ouvir?” E ouviu de resposta, temos fome. Gostaríamos de ouvir a boa comida.

Então o flautista tocou o som do crepitar da fogueira, da gordura do leitão assado caindo no fogo, do agudo dos pratos e dos talheres se encontrando, e do derramar do vinho sobre o copo. E os prisioneiros, surpresos, esqueceram-se por algum tempo que viviam com fome e suas bocas encheram-se de água.

Na noite seguinte, tornaram a encontrar-se com o flautista, que os perguntou: “o que é aquilo a que desejam ouvir?”. Teve de resposta, sentimos saudades de nossas mulheres e crianças. Queremos ouvir o som do carinho.

Então o flautista tocou as notas do sorriso, do correr das crianças pela casa, da brincadeira animada, do riso vindo das cócegas; tocou o estalar do beijo, do afago abafado do cafuné, da pele que se toca uma na outra. E os prisioneiros, alurdidos, sentiram o coração apertar da dor da distância.

E nas noites que se seguiram o flautista fez ecoar o som da chuva na floresta, da ventania na areia, da submersão na água corrente, do cavalo trotando, do ronronar dos gatos; do toque do grupo de amigos, do ressoar do sino, as ondas em choque com a praia. E até o que não era muito percebido, como o som das cores, das frutas, dos vários sentimentos. Até o som da prisão, fria, dura, difícil, quando tocada pelo flautista, tornava-se bela; e os prisioneiros ouviram pela primeira vez a beleza do cair da neve, do gelo sobre os rios, o “plosh” engraçado que fazia a ração quando caia melada no prato.

Mas a ração tornava-se escassa, e havia cada vez menos para todos; os guardas consultavam os prisioneiros para saber a quem poderiam levar para diminuir o contingente. Estes se reuniram e ponderaram, quem de nós trabalha menos e portanto mais desnecessário? E mais uma vez concluíram pelo flautista. Mas pensaram, sua arte é bonita, e ele nos tira dessa prisão toda noite por meio do sonho. Mas concluíram afinal, o que ele faz é escapismo, e não trabalhar. Deixe que o levem, e fiquemos com sua flauta; qualquer um aqui é capaz de tocá-la.

E os guardas levaram o flautista, e o prenderam no tronco de uma árvore, com um capuz no rosto; os prisioneiros assistiram pois imaginaram que ouviriam a melodia do lamento, uma última bela nota de tristeza. Mas o flautista era só um homem como eles e nesse momento derramou lágrimas e implorou por sua vida. Cessou de emitir sons quando uma bala entrou certeira em sua cabeça.

De noite, os prisioneiros se reuniram e tentaram todos tocar a flauta, um por um; mas não ouviram mais do que notas díspares e sem harmonia. Foi quando perceberam que nenhum deles sabia tocar a flauta, e muito menos como o flautista; e ao invés de música e lembranças eles ouviram o silêncio e o desespero. Se reduziram a isto, e nessa noite aprenderam que o momento em que mais damos valor ao que temos é quando já não temos mais.