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Ideias verdes sem cor dormem furiosamente

  • 24 de Julho de 2017

Numa bela manhã de outono percebi que minhas ideias sem cor dormiam furiosamente, apesar de verdes que são. E era assim, na cara dura, que me faziam de gato e sapato. Gato eu já era — isso foi antes da pancinha — mas sapato era a primeira vez.

E lá fui eu pro trabalho sendo um sapato. Por um momento pensei que a galera ia pisar em mim, mas que nada. Não é por você ser um sapato que as pessoas vão querer pisar em você. Na real, é necessário no mínimo uma olhadinha, uma testadinha, põe no pé, tira, põe no outro porque era o lado errado. Se fechar, talvez nem feche por muito tempo porque o modelo as vezes nem é do nosso gosto.

Achei péssimo. Ruim ser sapato, sapato não quero ser, eu pensei, mas antes sapato que ideias verdes. Sapatos tem descanso tranquilo após o dia de trabalho.

Mal podia eu esperar para voltar em casa após um dia de trabalho, mas me veio à sola que minhas ideias dormiriam furiosamente novamente. Isso me desfez o nó. Quem elas pensam que são? Que tipo de ideias dormem furiosamente? Ainda mais em sapatos. Sapatos não são pra pensar. Senão, o que vão pensar da caixa de sapatos? Suas ideias iriam dormir tristemente. Grande absurdo.

Para a minha surpresa, eis que me vi testando a ideia assim que cheguei em casa. Um pouco descalçado do dia, é claro; se não fui calçado é bem verdade que não fui pisoteado. Mas enfim — no momento em que cheguei me meti numa caixa de sapatos.

Sim, uma verdadeira caixa de sapatos; inébril (calma, inébril não, acabo de ser informado pelas minhas ideias de que a palavra inébril não existe. Será que deixou de existir, será que foi levada pelo tempo, ou pela crueldade humana, como o pássaro dodó? De qualquer maneira, a caixa de sapatos não era inébril). Me veio às ideias de a caixa de sapatos era pouca coisa, e triste dela ainda ter perdido a inebricidade.

Enquanto eu me recostava ao confortável papelão, me veio às ideias que eu podia muito bem chamar a caixa de sapatos de tudo que eu quisesse. Agora ela seria inébril! Que a sociedade não me impeça de dormir em caixa de sapatos e achar isso bastante inébril.

Nesse dia de outono minhas ideias não dormiram furiosamente. Dormiram com outro sentimento que não o som e a fúria. E eu nem fui trabalhar, tamanho o conforto com a minha existência e a convivência pacífica com tão verde ideias.

Que vida, meus amigos, que vida!