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A Orla Trancadíssima

  • Escrito em 2019

alguém escreveu o sentido da vida numa garrafa e jogou no mar, e todo mundo ficou sabendo. não do sentido da vida, é claro, ficaram sabendo que dentro de uma garrafa, em algum lugar do oceano, estava escrita num papel com tinta o sentido da vida.

o sentido mesmo, bem, todo mundo teria que ir atrás e procurar. e começou uma caçada mundial, e as pessoas correram pro oceano e se jogaram todas com redes pra ver se chegava. e estudantes em universidades fizeram simulações para saber para onde a garrafa iria, o que se provou ser difícil já que ninguém sabia de onde vinha. mergulhadores do mundo inteiro foram para as profundezas, e logo haviam mais barcos no mar do que carros nas ruas.

eu e os meus amigos fomos também, eu lembro muito bem. mas não tínhamos nem uma vara de pescar sequer, quem dirá um sonar ou um satélite. pesquisamos na internet e tudo, como encontrar garrafas perdidas no mar, e passamos o dia levando onda pra ver se vinha com mensagem, mas logo nos cansamos e fomos tomar água de coco.

não demorou muito pra praia ficar lotada, como se fosse uma liquidação num shopping ou algo assim. nos sentamos e vimos os helicópteros no ar e os barcos na água, as pessoas na areia e as vendinhas de cachorro quente na orla. comemos muito cachorro quente nesse dia.
logo chegaram notícias que a orla ia ser fechada, que guardinhas não sei de onde estavam expulsando as pessoas e exigindo cadastramento. ficamos tristes porque talvez isso significasse que não tomaríamos mais banho de mar. deixei meus amigos por lá e peguei o snoopy em casa. quando chegou ele ficou nervoso porque tinha muita gente (era muita gente mesmo!), mas logo fomos pra distante e corremos na praia. temi que fosse a última vez.

quando ia anoitecendo nos sentamos na areia e ficamos olhando o mar iluminado com holofotes gigantes feito jogo de futebol. as máquinas fazem um barulho desgraçado, mas do que a ventania ou o barulho das ondas. comemos mais cachorro quente e bebemos em nome do fim da praia. o que vai ser do camarão alho-e-óleo, eu pensei.

dormimos, mas de madrugada um guardinha nos expulsou dizendo que não poderíamos estar lá. mostramos o dedo quando ele não estava vendo, mas ele virou e saímos correndo. fomos descalços até a rua, para sentir a areia nos pés um pouquinho mais.
no dia seguinte me disseram por mensagem que a praia estava trancada com muros enormes, do começo até o fim. de tarde meus amigos vieram lá pra casa e a gente ficou na borda da piscina. eu perguntei o que tinha pra fazer nessa droga de cidade além de praia.

saímos de bicicleta para revelar as fotos do dia anterior e eu percebi que andar de bicicleta era uma boa alternativa. eu me pergunto o que estava escrito naquela maldita garrafa. o que você acha que vão fazer quando acharem? eu acho que vão quebrar em mil pedaços e rasgar, pra gente não ficar sabendo e o mundo continuar da mesma forma que é pra sempre. ou então alguém solitário encontre e faça bom uso pra si mesmo. sei lá, alguém na indonésia ou no caribe. agora que eu pensei bem, pena das cidades não costeiras, que vão ficar em desvantagem para sempre.

o que eu quis dizer é, aproveite o que você tem enquanto ainda tem. a água de coco agora custa pra uma caçamba. e o camarão alho-e-óleo, etc. é tão horrível. mas a gente deu um jeito e agora na borda da piscina tem areia artificial, que custa bem barato na verdade.
mas a gente vai pouco na piscina agora. a gente andou de bicicleta e cansamos; jogamos boliche e cansamos; fomos pro karaoke e ainda não cansamos. quando cansar eu aviso.

quem não tem cão, caça com gato, né? deve ter isso escrito na garrafa lá. dá-se um jeito pra tudo. esse deve ser o segredo. ou alguma auto-ajuda qualquer tipo “acredite em si mesmo!”