Menina Passarinha
escrevo essa pequena carta para te dizer que não suporto mais tua presença fantasmagórica, teu estar e não estar na minha vida ao mesmo tempo, sem decidir se teu amor por mim arde ou não arde. estou cansada de deixar a porta aberta para você voltar, enquanto para mim nossa casa é uma jaula que me mantêm trancafiado enquanto você alça suas asas por aí, sabe deus fazendo o quê e porque sem mim. onde eu te procuro você sumiu.
te acho apenas em pedaços. um fio de cabelo grudado no meu travesseiro, um cheiro bom quando amanhece o dia, uma lembrança boa de nós dois quando ainda havia nós dois. você se dava fragmento enquanto eu me doava toda. isso cansa, isso cansa, isso cansa. cansei de te falar.
no meu corpo - a casa onde reside minha alma - só tem espaço para um de nós. vai ficar quem sempre esteve aqui. você chegou desavisado, fez morada, e me fez preparar o almoço pensando que você ficaria para o jantar. só ficou para o café e antes do meio dia já estava de saída.
minha garganta treme, meu canto vai mal, isso é mal de passarinho de gaiola. os portões se abrem e ele tem medo de voar. as asas duras, engessadas, o bico calado. os domingos são mais difíceis, estou mais só. porque fui me acostumar com alguém que estava mais fora do que dentro?
morei sozinha enquanto pagava seu aluguel.
não quero saber se tinha outras passarinhas por aí, por onde andava quando o telefone era apenas espera, se um dia realmente tive algum lugar no seu coração, ainda que apertada e dividida tal qual casebre. apertada me acostumei a ser quando as palavras me apertavam o pescoço, presas sem chegar na boca, apertada estive na ânsia de você chegar de um dia quando na verdade chegou no outro.
escrevo essa carta como um livramento. sua presença em minha morada não reside mas persiste. te quero longe, fica aonde tu vais quando volta tarde da noite quando pensas que estou a dormir mas desperto ouvindo teus passos ecoarem no chão da casa.
sei que você irá voltar, então suponho que quem tenha de sair sou eu. lavo a louça, rego as plantas, passo o pano, limpo a poeira de cima dos livros. não faço por você. faço pelas memórias que as coisas tem. os cantos carregam lembranças. os espaços se lembram de quando eu fui feliz em cada um deles. não os levo comigo. vou alçar novos rumos.
e você não vai mais me prender em lugar nenhum. a chave está na fechadura. deixei a porta aberta. não me procure mais.
da sua passarinha,
ps: escrevi da "sua" passarinha na força do hábito. sou minha, sou minha, sou minha.