Pot-pourri
Minha terapeuta me instruiu a escrever o livro das preocupações. É assim: coloca-se uma moeda no jarro, e escreve-se no papel sobre o que anda me atormentando no momento. Não costumo dar muita bola para o que diz minha terapeuta, verdade seja dita, como aqui ela não pode ler tenho a liberdade de confessar que a pago para ouvir o que digo, quando ela começa a falar já quero que pare porque detesto quem fala da minha vida. Mas por hábito continuo indo às sessões, gosto do cheiro que emana do seu pot-pourri na bancada do consultório, quando passo pelo portão/garagem me sirvo dos girassóis da entrada e do suco de polpa super sem açúcar que a recepcionista serve; me sinto bem recebida, logo eu que não sei bem receber. Escrevendo agora à mão percebo quanto tempo já me faz que não seguro um lápis ou uma caneta que seja; o próprio papel me parece tão espesso e tão… dobrável. Faria um pequeno origami se soubesse fazer um.
O livro das preocupações é um caderno que comprei na boutique da praia à caminho de casa. Também me comprei duas canetas, um conjunto de lápis Faber-Castell, um apontador, duas borrachas, uma verde e uma branca, porque peguei primeiro a verde mas no caixa não aprovei sua consistência. Fiquei com vergonha de pedir pra moça tirar, e peguei uma branca. Também levei um trident, que é uma goma de mascar que me tira a vontade de fumar que dá uns arrepios vez ou outra.
Eu já provei todos os sabores de trident. Que eu encontro, isto é. Ainda faltam muitos tridents que não sei onde comprar mais. Talvez possa comprar uma caixa e ir comendo com o tempo, e o livro das preocupações vira também um ranking dos melhores sabores de trident. Engraçado como eles colocam gostos diferentes no mesmo tablet. Curioso, não é mesmo? Açúcares diferentes? Feitos com genética? Depois vou dar um google. Como eles fazem açúcares diferentes pro trident.
Moro com outras duas mulheres e isto é bom. Ou era. Elas voltaram para casa no início da pandemia e me deixaram aqui sozinha. Disse-lhes que era bobagem, que com gripe ou não a vida continua, mas elas só saíram pela porta com as malas, deram beijinhos e agradeceram tudo. Não vão voltar tão cedo. Mandei uma mensagem ontem mesmo, dizendo que tudo já está reabrindo por aqui, pode-se até tomar um banho de mar sem ter que olhar se vem policiais, as boutiques, farmácias, restaurantes, terapeutas todas reabriram. Mas nenhuma deu bola. Não estão tendo aulas mesmo.
Eu invejo essas garotas, de certa maneira. Tão jovens, estudam tanto. Na idade delas eu não sentia a mínima vontade de estudar; as duas vivem com as cabecinhas entre os livros. E não são obcecadas. Vão para festas, vez ou outra trazem rapazes. No fundo no fundo, eu achei que valeria a pena estar por aqui mesmo com a universidade fechada. Poderíamos jogar mais daqueles jogos de tabuleiro que elas têm, às vezes compro chás e biscoitos para vermos séries juntas. Tanta coisa acontece nessas séries, é um barato, não sinto falta de ver novela. Eu via muita novela na idade delas. Acho que as novelas evoluíram para as séries.
Eu poderia escrever um livro só falando das vezes com essas meninas, mas vou poupar leitor e diário do esforço. Mas uma coisa que me incomoda é que elas comem muita porcaria. Céus, como gostam de trazer besteira pra dentro de casa! Os rapazes eu entendo, tudo bem, um feinho de vez em quando eu acho que é até saudável. Mas no meio da semana, quarta, quinta, eu atendo o interfone e me vem um moço entregar uma caixa enorme de sanduíches. E que parecem ter sido esmagados na viagem, coitados! Já são feitos com o mal, se tornam ainda piores vindo aqui. Mal se pode reconhecer do que são feitos. Eu perguntei Renata, o que tem nisso aí? Aí ela diz, limpando o lábio inferior, ah, tem cebola, alface, carne… essa coisinha aqui em cima, como é o nome? Gergelim, Renata. Sabia, Renata, que o gergelim tem muita fibra? Dá pra fazer um doce de gergelim que fica uma delícia, sabia? Bem melhor que essa bomba calórica aí. E a Renata fica, anham, anham. E me oferece um potão de batata-frita. Eu nem sei com qual óleo eles fritaram esse mondrongo. Sabia, Renata. Que dá pra cozinhar com óleo de gergelim? Super saudável.
Ofereci um desconto enorme pras duas voltarem nesses meses de setembro, outubro. Elas sabem que é próximo do meu aniversário. Elas agradeceram, disseram que não dava, só quando as aulas voltassem. Amanda me mandou uma foto do cachorrinho dela brincando de bola. São umas fofas, essas meninas. E tão estudiosas, já disse.
A minha preocupação de hoje, para inaugurar o diário, é que estava eu na praia, pegando meu bronze de todo dia, lendo meu novo romance, sentada na minha cadeira, enfim. E chega um menino de Deus sabe aonde, um horror, todo serelepe pulando e chutando areia por tudo que é lado. E eu só observando debaixo dos óculos, tentando me concentrar. E ele continua pulando, chutando essa bola, a coisa mais chata. Tem gente pra tudo, né? Um horror. E aí eu digo, gente. E esse menino olha pra mim. Ah! Esqueci o mais importante. O pirralho, de máscara. Você já viu um desses, uma criança de máscara? É tão engraçado, que coisa pitoresca, tem gente pra tudo… E eu na praia, sentadinha, na minha santa paz. E vem esse menino.
Aí ele vem falar comigo, segurando a bendita bola. “Tia, não vai usar máscara não?” e eu oi, queridinho, eu tô na praia, tá bom? Tô lendo meu romance novo, tô legal. Não preciso de máscara no mar, tá bem?”
“Tia, vai pegar corona e passar pros outros”
“A tia não tem corona, tá, meu queridinho? Vem cá, cadê seus pais, hein? Vai brincar de bola com eles, tá? A tia tá ocupada”
“Mas tia, as chances de contágio pra quem não usa máscara são 60% maiores do quem usa toda vez que sai”
Eu fecho meu livro e meu sorriso. Foi como se o sol tivesse desligado.
“Vem cá, você é uma calculadora, é? Você é um cientista social? Cadê seu título em medicina? Vai zanzar pra lá, menino chato, me deixa em paz.”
Você acredita? Eu fui super educada, eduquei o menino a respeitar os mais velhos e as mulheres, não sequer levantei a mão pro fedelho. Não é que o menino chegou perto, mordeu minha mão e saiu correndo, espalhando areia no meu vestido todinho?
Eu fiquei fula!!! Nossa, como eu fiquei, virei uma fera. Soltei um berro, ahhh, e o menino devia ser órfão porque eu passei HORAS atrás dele ou dos pais dele e nadica de nada. Tá, não foram horas. Foi um tempo. Grande. Voltei pra casa e coloquei o vestido pra lavar, tomei um belo de um banho, acabou meu dia. E cá estou eu, com a mão enfaixada, com a marca dos dentes afiados da criatura ainda pulsando. Achei que criança não tinha dente, da idade dele eu achei que os dentes estavam para nascer ainda. Que diabinho!
Minha mãe vem me visitar na segunda. E eu aqui aplicando gelol, o calor de 32 graus e eu de luva, o que vou inventar pra minha mãe? Detesto quem fala de mim. Vou parar de escrever por agora, as meninas me escrevem pelo celular. Amanda disse que é o meu “inferno astral”. Vou ter que dar um google. Se houver um inferno astral, estou certa de que esse pirralho vai direto pra ele!