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Reconsidere

  • 13 de Setembro de 2018

Eu o perguntei se sabia o porquê da minha visita, e ele disse que “sinceramente não fazia ideia”. Eu juro por Deus que tento, mas aquele homem estava simplesmente me tirando dos nervos. Acho que já cheguei na casa meio puto. O que acontece é que no caminho eu disse pro motorista novo e pro Trevor que esse tal de Saint Phillip vai ser difícil, sujeitinho cheio de si, que vai me expulsar do seu gramado no momento que eu pisasse fora do carro, que quem dirá vai chamar um tira amigo dele, que vai fazer cara de mau e mostrar os dentes. Desafio de convencer. Fiz papel de idiota quando cheguei e avisei que precisávamos conversar, e o cara me disse “pode entrar”.

Pode entrar? Assim, na lata? Eu olhei pro Trevor, que relaxou completamente. Porra, Trevor, e fiz um sinal pra que ele ficasse ao menos atento. Paletó aberto, arma no bolso de trás da calça, como se me dissesse “você se preocupa de graça”. Fiquei mais nervoso ainda.

Entramos, eu e Saint Phillips. A casa era tão nova dentro quanto fora, claramente. Daquelas compradas na planta. Saint deve ter pago a vista, eis um homem sem paciência nem pra lavar dinheiro inteligentemente. Puts, o que devem pensar seus vizinhos. Um cara mal-encarado, forçudo, sem nenhuma feição de herdeiro, homem de negócios ou coisa que o valha, aparece aqui num bairro de subúrbio, compra a primeira casa que põe o pé, com o preço e a decoração de classe alta. No bairro onde eu moro, no dia seguinte a família da casa ao lado chamaria a polícia.

Saint parece no mínimo um carregador muito jovem, que passa o dia ajudando o pai a levantar sofás para colocar na parte de trás do caminhão. No máximo, ele parece exatamente o que é: um cara que ganha meu dinheiro quando ele mata quem eu mandar ele matar, do jeito que eu quero que ele mate.

O problema agora é que Saint Phillip se aposentou, se é que esse tipo de coisa acontece no ramo em que trabalhamos. A verdade, meus amigos, é que não acontece, e a prova sou eu aqui dentro sentado nesse sofá tosquíssimo enquanto lá fora estão dois dos meus melhores homens, cada qual com uma Colt, e no porta-luvas mais duas junto dos documentos do carro.

“eu estou aqui porque precisamos de você de novo, Saint. precisamos mesmo” “é uma pena”, ele respondeu, “eu estou fechado para negócios”. Dei um gole educado no vinho que ele me ofereceu, totalmente fora do protocolo. “você não está entendendo, Saint. nós vamos fazer de você um homem rico”. “você sabe que não preciso do seu dinheiro”.

Desgraçado. Se saísse da boca de outrem, eu saberia muito bem o que isso queria dizer. “eu não tenho preço”, a pessoa me diria, e quando diz isso é para que ironicamente eu a faça um preço. Quanto mais alto melhor, o céu é o limite, é indecente o quanto as pessoas estão pedindo agora. Mas Saint era jovem. Saint não tinha experiência. Gosto disso nele. Ele não faz por dinheiro, e isso me faz economizar bastante.

“o que você quer, Saint? o que podemos lhe oferecer? segurança? temos muita gente na polícia, você sabe. ou por acaso, alguém para lavar seus trocados. sei que ainda tem algum dinheiro guardado. amanhã mesmo você poderá usá-lo, Saint.”

Ele começou a rir da minha cara. “escute, dê o fora daqui. encontre outro”.
“quanto tempo você acha que vai conseguir viver assim? nesse inferno que você montou pra você? isso não é você, Saint. não vai demorar muito até que o governo bata na sua porta, atrás de documentos e tal. podem chegar nossos inimigos. gente que não é a gente…”
“eu não tenho inimigos”
Me reclinei no sofá e terminei a taça. “só te peço um homem. um juiz daqui que não quer cooperar de jeito nenhum. você sabe quem é, Saint. me ajude a-”
“nunca é somente um só homem”, Phillip me interrompeu, “eu apago um aqui, um ali, e quando vejo é minha vida novamente”

Foi nesse momento que notei que deveria ter vindo com um plano para convencê-lo de vez, ou ao menos pensado num rapidamente. Não esperava nem pisar no chão do indivíduo. Aqui estou eu derrubando seu vinho. Preciso de mais descanso, talvez.

“escute, eu agradeço o que vocês fizeram por mim. eu realmente sou grato. mas eu não posso voltar pra isso. eu estou ao máximo tentando viver uma vida normal. matar gente, isso não é vida. ganhar mais dinheiro do que eu consigo gastar, ou quero gastar, isso não é pra mim”.

Era o que faltava para eu me enfezar. O cara estava negando educadamente. Não fosse um dos nossos, eu o tinha amarrado e posto uma faca para ele observar bem de perto. Me levantei de uma vez.

“seu moleque mal-agradecido. você acha que é bom? você nunca foi bom. nunca se livrou de um cara direito. você não tem técnica, nunca teve; não sabe matar sem sujar tudo ou criar a maior bagunça. sabe quanto eu já perdi limpando suas merdas? mais do que eu te pago, tenha certeza. a única razão pela qual estou aqui hoje é porque você aceita fazer barato, bem barato. tenho um endereço de umas moças, a Rachel e a Jade, que mataram muito mais em um mês do que você em toda uma vida. você matou foi pouco, Phillip, você era péssimo nisso, e é bom para todo mundo que não esteja mais na ativa”.

Ele me observava completamente neutro, indecifrável. Algum tempo de silêncio, e ele me responde “sendo assim, acho que você pode ir embora agora”.
Caminhei até a entrada. Saint Phillip foi em completo silêncio atrás de mim. Pegou meu paletó e me vestiu.

“escute, Saint…”
“está tudo bem”
“escute. a razão pela qual eu faço questão de insistir que você volte, a razão pela qual eu estou aqui hoje… é que todos os nossos caras, ou a Rachel e a Jade…fazem por dinheiro. fazem porque precisam. fazem porque eu mando. mas você não. você…você faz porque quer. faz porque gosta. pra você é quase como chapar, não é? o prazer, a euforia. a surpresa. eu admiro isso em você, Saint.”
“é por esse exato motivo que não quero voltar”
, disse Saint Phillip na porta de casa. Começava um leve chuvisco.
“saiba que vejo muito potencial em você, garoto”, eu disse indo em direção ao carro. “quem gosta daquilo que faz vai longe”.
Ele não me respondeu. Trevor abriu a porta, e eu entrei. O motorista deu a partida, e eu baixei o vidro.
“pense a respeito. é sua natureza, garoto. é o que você faz de melhor. não vai querer ir contra a própria natureza…”
Phillip acompanhou o carro com o olhar e eu o acompanhei pelo retrovisor. A chuva engrossou, e sua imagem ia se desfigurando com as gotas d’água.

Trevor perguntou como foi, e eu pensei logo em dizê-lo que foi mole que nem pudim. Mas o surpreendi com uma resposta mais longa — comumente não faço isso.

Disse a ele que esse cara deve ter algo guardado em casa para lembrá-lo dos velhos tempos. Um rifle, uma sub-metralhadora, um revólver que fosse. Hoje a noite, quando a chuva estiver batendo forte no vidro, ele vai abrir a gaveta onde guarda sua ambição. E ele vai olhar fixamente para ela. E vai tocar nela. Vai se imaginar conseguindo tudo o que quer. E daqui uns dias, eu disse pro Trevor, ele vai me ligar. Ele tem o meu número.