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O Homem que Traiu a Morte

  • 20 de Agosto, 2020

Conta-se de um soldado que traiu a morte.

Pois havia chegado o seu momento de partir, e já estava diante da barca da morte, que havia lotado com seus companheiros de batalha, amigos ou inimigos: a morte lhe disse, "não cabe mais ninguém. fique aqui que cruzarei o rio e voltarei para buscá-lo". Mas ao invés de esperar, deu meia volta e retornou ao mundo dos vivos.

A morte, enfurecida, resolveu-lhe pregar uma peça.

E quando o soldado retornou para seu vilarejo, não encontrou ninguém.

E visitou primeiro a sua casa, mas sua mulher e filhos não responderam seu chamado. Não havia lenha à crepitar na fogueira. Foi ao padeiro que morava ao lado mas não sentiu o cheiro do pão; bateu na portinhola de onde sempre saía um moleque atrevido, afilhado do padeiro, e ele não apareceu.

Não havia missa à se rezar na igreja, pois o padre havia sumido. As velhas fofoqueiras não sentavam mais ao banco da praça. Havia uma janela e as flores lá repousavam. A menina bonita que as vendia não estava lá. E, observando as flores, percebeu que sem a menina elas já não eram de nada. Só flores.

O vento uivava à distância.

Olhou em volta. Tudo estava do mesmo jeito. Sua casa era como se lembrava, a praça também; no córrego a água corria, e o moinho girava da mesma forma. Mas já não havia ninguém. Não havia presença.

Então tudo era ruína.

De noite, o soldado foi até um grande lago no bosque. Não havia ninguém por perto para julgá-lo, então ele chamou a morte. Sentiu-se um covarde, afinal era um guerreiro. Mas chamou de novo, e nada. E apesar de tanto sentir sua presença, a morte não veio.

Sentou-se ao banco da praça. Sua memória era como sua espada, cortando os véus do esquecimento; seus dias eram um exercício da imaginação e da lembrança, rememorando todos que viviam por lá: sua mulher, seus filhos, o padeiro, o moleque, o padre, as velhas, a menina, todos.

Era até que bom. Reavivava a ruína. As vezes vestia as roupas dos outros, intocadas nos armários; falava nas vozes dos outros, era ao mesmo tempo pai, filho e esposa, atuava e relembrava. As vezes cansava-se e ficava ao banco da praça, rezava a missa sozinho. Cheirava as flores. Ia no lago.

Meu pai contou-me essa história na última vez quando fui visitá-lo no hospital, semana passada. Eu o perguntei, pai, sabe quem sou eu? Ele disse, lembro, lembro sim, meu filho. Mas seus olhos diziam outra coisa.

Eu o perguntei, pai, como é saber quem eu fui, mas não saber quem eu sou? Ele falou que sentia-se como o soldado dessa história. A vida era agora, talvez, como chegar numa grande festa em que todos foram embora.

O abracei muito forte, trazendo pra perto na esperança de não deixá-lo ir. Ele percebeu e tentou retribuir.

Eu e você, nós ainda estamos aqui.